A linha de caminho de ferro do Algarve, que é o nosso guia desde o início desta viagem costa-a-costa, depois de atingir as alturas de Loulé deixa-se ficar por essas latitudes e só regressa aos litorais algarvios em Estômbar, Portimão e Lagos.
Após ultrapassar Ferreiras-Albufeira, aliás, sobe ainda mais e cruza a Via do Infante, para se encontrar com a linha do Sul, em Tunes, onde também se inicia o troço para Lagos. Nesta, digamos, segunda etapa do trajeto total, passa perto de povoações fracamente povoadas – entre dois e quatro mil habitantes – e as estações encontram-se demasiado afastadas das povoações que “servem” e, portanto, pouco úteis para os habitantes locais. De facto as estações, ou melhor, os apeadeiros – com exceção de Algoz – ficam sempre desencorajadoramente longe dos núcleos urbanos.
Como os meus leitores mais assíduos se lembrarão, uma das razões que nos empurrou para esta lenta romaria costa-a-costa, foi a notícia do arranque da eletrificação da linha do Algarve, nos troços Tunes-Lagos e Faro-Vila Real de Santo António. Parecia uma ideia tão estupenda que quisemos celebrá-la com estes trabalhos que aqui vamos publicando. Contudo, termos sido viajantes deste comboio ronceiro fez mudar a nossa perspectiva, não pelo desconforto do comboio em si, mas por alguns dos percursos que toma, erráticos e de discutível utilidade. Parece-me a mim, que não sou técnico, que, sem alterações ao traçado da linha, eletrificá-la não irá resolver os problemas da desejada mobilidade sustentável, como se refere optimisticamente no projeto governamental.
Neste mês de março de 2023 – em que o Conselho de Ministros se deslocou em bloco ao Algarve – foi lançada com a pompa e circunstância devidas a notícia do projeto de um metro de superfície que iria unir Olhão a Loulé passando por 24 estações, para servir 180 mil pessoas. Exultei com a ideia. “Excelente! Até que enfim”, exclamei com os meus botões. Só que, poucos dias passados vieram corrigir a notícia: afinal já não era um metro de superfície mas um metrobus, ou seja, uns autocarros eléctricos que irão utilizar um corredor próprio presumo eu aproveitando (e estreitando?) as estradas pré-existentes. Acresce que de momento só há 70 milhões comunitários disponíveis, dos 120 necessários, mas tudo deve estar pronto lá para os finais de 2029. Deixem-me rir!…
Mas deixemo-nos de críticas. Para além dessas distâncias e notícias falsas, o que mais experienciou o cronista? Paisagens? Obras de arte? Belos palácios? Imponentes igrejas? Petiscou? O quê, então?
Bom, paisagens viu, mas sobretudo deparou-se com pacíficas correntezas de casas simples e airosas, não viradas para o turismo (ainda…) , com as suas formas e cores tradicionais, sobretudo o branco e vivos, aqui e ali, a ressaltar um pormenor ou uma função.
Talvez todas essas povoações, Boliqueime, Ferreiras, Tunes, Algoz, Alcantarilha, Poço Barreto, guardem um pequeno e maravilhoso segredo da curiosidade superficial dos viajantes que, como nós, apressadamente e sem dar tempo ao tempo, pretendem chegar ao âmago das coisas sem a devida parcela de suor. No que nos diz respeito, confessamos que, tendo parado em cada um dos apeadeiros para dar uma vista de olhos, só nos detivemos com mais vagar em dois. O primeiro foi em Alcantarilha, porque tínhamos curiosidade em visitar a Igreja de Nossa Senhora da Conceição que alberga uma Capela dos Ossos. Este gosto macabro pelas “Capelas de Ossos” é frequente no Algarve – Faro e Lagos possuem uma – mas também é muito alentejano, vide a conhecida e imponente “Capela dos Ossos” de Évora ou a mais modesta de Campo Maior.
Em Alcantarilha, a Igreja paroquial situa-se frente à estrada mas a dita capela esconde-se num pequeno largo adossada ao lado Sul. Nesse largo deparamo-nos com uma impressiva homenagem a um prolífico poeta da terra, Manuel Neto dos Santos, que viemos a descobrir, produziu nos últimos trinta anos uma vasta obra poética. Olhando a ribeira de Alcantarilha que se contorce preguiçosa na larga e pacífica planície, recordei um belo verso do poeta: “Escrevo, para ouvir como se agitam as águas perante o rumor da minha voz […] / Escrevo, para que os sons da noite se revelem como relâmpago azul, dilacerando o silêncio […].”(1)
Finda a homenagem ao poeta da terra, admiro agora a macabra capelinha e os ossinhos dos seus hóspedes silenciosos. Reflito por instantes sobre esta vida tão breve e visualizo o meu próprio crânio, ou uma tíbia, a adornarem aquela parede peculiar até me dar um tremendo arrepio que me fez bater em retirada.
Após esta digressão metafísica, damos um salto para São Bartolomeu de Messines, visita facultativa segundo o nosso plano de viagem, pois é servida pela Linha do Sul e não pela Linha do Algarve, mas que representa uma deferência nossa à grande figura das letras portuguesas nascida nessa bela terra e de seu nome João de Deus de Nogueira Ramos. Quem queira prestar uma homenagem aos seus restos mortais, pode fazê-lo no Panteão Nacional, em Lisboa, pois esta personagem foi uma das grandes luminárias do romantismo literário e mereceu essa subida honra.
Não teve porém vida fácil, pelo menos do ponto de vista financeiro, o nosso poeta. A largueza de meios nunca lhe bateu à porta, apesar do enorme prestígio nacional de que gozou, mas é assim o nosso Portugal, onde é tão difícil ser artista a tempo inteiro. Num poema satírico que cito de cor queixava-se ele: “O dinheiro é tão bonito / Tão bonito o maganão / Tem tanta graça, o maldito / Tem tanto chiste, o ladrão […]”
Pois na terra onde nasceu João de Deus, e na mesma casa onde viveu a partir dos 11 anos de idade até entrar no Seminário em Coimbra, os seus conterrâneos decidiram instalar uma Casa Museu onde, para além de uma variada atividade sociocultural, se perpetua a grande personalidade do artista e pedagogo.
Sim, pedagogo, pois – imagino que toda a gente o sabe – a maravilhosa Cartilha Maternal que ensinou a ler os nossos avós é obra de sua autoria.
A fachada principal da Casa Museu é muito curiosa e foi muito bem recuperada nos anos noventa. Um dos elementos mais interessantes é a moldura das portas e janelas talhada numa pedra grés extraída das pedreiras de Monte de Boi, ali vizinhas. Com a erosão, a pedra ganha relevos e um tom arruivado muito característico, que ressalta do fundo de pedra mármore mosqueado, também fruto da região.
Aliás, o mesmo tipo de pedra anima a fachada da Igreja Matriz, vizinha da Casa Museu, e que por si só justifica uma visita a São Bartolomeu de Messines. Foi edificada nos finais do Séc. XV primeiros anos do Séc. XVI num estilo de inspiração manuelina, embora a fachada exiba uma decoração barroca de belo efeito. O mais interessante, porém, está no interior onde as naves são separadas por raríssimas colunas salomónicas de grés vermelho. O estilo manuelino perpetua-se numa série de arcos e abóbadas com as nervuras típicas deste estilo, uma delas ostentando no fecho a cruz de Cristo.
É claro que o somatório destes detalhes encantadores não fazem por si só um monumento que deva ser visitado e admirado. A verdade é que para além desses pormenores há um não sei quê de arrebatador neste conjunto urbano cravado na encosta da colina do Penedo Grande: a igreja, o museu e o posto da GNR, também ele ornado com as mesmas rochas vermelhas de Monte Boi.
Isto de ser cronista é por vezes muito embaraçador, porque temos tendência a utilizar os nossos valores e gostos nas escolhas que vamos fazendo: falar disto e não falar daquilo e, assim fazendo, vamos deixando marcas por omissão. É o caso agora: quase que me ia embora sem falar de José Maria de Sousa Reis (1796-1838), um filho adoptado desta linda terra, mais conhecido pelo cognome de O Remexido. A minha relutância tem a ver com o modo tremendamente violento como O Remexido defendeu os seus ideais miguelistas, socorrendo-se da guerrilha armada, à frente da qual semeou o pânico e o terror no Algarve e Baixo Alentejo, até ser fuzilado pelo exército liberal.
Resta desta sangrenta história a memória dos seus feitos cruéis e a casa onde viveu, incendiada pela fação liberal num ato de vingança pública. É assim a história…
(1) Manuel Neto dos Santos, Círculo de fogo, 2016, p. 151.