
Classicista;
Professora da Univ. do Algarve
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Há vários anos que este livro esperava na minha biblioteca para ser lido. Da autoria do italiano Italo Calvino (nascido em Cuba, mas cedo os pais o levaram para a sua terra natal), foi escrito em 1979, após um interregno de alguns anos, em que o autor nada publicou: “Com que então, viste num jornal que saiu Se numa noite de Inverno um viajante, novo livro de Italo Calvino, que já não publicava há vários anos. Passaste pela livraria e compraste o volume. Fizeste bem” (p.18).
Estará o autor a quebrar alguma barreira ficcional e a dirigir-se a nós? Seremos nós o Leitor a quem o narrador se refere? A surpresa do leitor actual de Calvino (que somos nós) ao ver-se retratado no próprio livro não será a mesma, passados que foram 38 anos da sua publicação (ou 32 anos depois da edição portuguesa de 1985, pela Vega Editora, com um apêndice de Calvino e outro de José Manuel Vasconcelos, um dos responsáveis pela tradução. É esta a edição que cito. Posteriormente, em 2000, a Teorema publicou a mesma obra, com tradução de José Colaço Barreiros) e depois do muito que já se escreveu. Porém, cada um que passa pela experiência de leitura de Se numa noite de Inverno um viajante não deixa de perceber o estranho jogo que Calvino faz connosco, leitores reais, e a personagem Leitor que cria na sua ficção, pretendendo, em vários momentos, que nos (con)fundamos.
Teoria e prática

O livro é constituído por 12 capítulos com uma história que serve de esteio para as 12 outras histórias que se intercalam com ela e que só têm começos. Isto é, a personagem Leitor começa a ler um livro, mas não consegue acabar, porque as páginas se repetem. Quando vai à livraria para trocar, traz um outro livro. A ida à editora não melhora a situação, pois o livro que traz é um outro ainda. Entretanto, dá-se o encontro com uma Leitora a quem acontece o mesmo. Entre a busca por um autor cujos livros estão a ser falsificados ou a procura do tradutor-falsificador, vão sendo lidos princípios de livros que nunca se conseguem terminar. E nós, leitores (com letra pequena), vamos acumulando histórias que gostaríamos (ou não) de ver concluídas, ao mesmo tempo que somos arrastados pela insanidade das personagens que se cruzam nesta demanda fantástica: além da Leitora, há a sua estranha irmã, há professores de línguas inexistentes, há um amigo que desaprendeu a ler, há bizarras polícias secretas que censuram livros…
Nas palavras da personagem Flannery, o escritor que tem muitos livros falsos em circulação, lemos a génese e o resumo do próprio livro que estamos a ler e já reconhecemos nesta citação tudo o que já sabemos (estre trecho aparece a 1/3 do fim, na p.181-2): “Surgiu-me a ideia de escrever um livro feito apenas de começos de romance. O protagonista podia ser um Leitor que é continuamente interrompido. O Leitor adquire o romance A do autor Z. Mas é um exemplar defeituoso e não consegue ir além do princípio… Volta à livraria para que lhe troquem o volume… Poderia escrevê-lo todo na segunda pessoa: tu, Leitor… Poderia também fazer entrar nele uma Leitora, um tradutor falsário, um velho escritor que mantém um diário como este diário…”.
Leitores (e leituras), há muitos

Por todo o livro vamos lendo reflexões sobre o próprio processo de escrita e, principalmente, de leitura. Flannery diz ao Leitor: “a mim acontece-me cada vez mais frequentemente pegar num romance que acaba de sair e encontrar-me a ler o mesmo livro que já li cem vezes”. Depois, já no seu diário, escreve: “A mim sucede-me isso ao escrever: há uns tempos que cada romance que me ponho a escrever se esgota pouco depois do início como se nele já tivesse dito tudo o que tinha para dizer”. (p.181).
No penúltimo capítulo (o último só tem seis linhas e serve como epílogo), o Leitor encontra sete outros leitores numa grande biblioteca a que se tinha dirigido em busca dos livros que nunca conseguiu terminar (pp.230-235). Cada um destes leitores tem uma forma diferente de abordar a leitura e é muito interessante como nos identificamos com algumas delas ou conhecemos alguém assim, ou já nos aconteceu fazermos de todas aquelas maneiras, com livros diferentes, como se cada livro condicionasse a leitura e esta não fosse condicionada pelo tipo de leitor. Todas são válidas. Por exemplo, o primeiro leitor que o interpelou diz que «Se um livro me interessa verdadeiramente, não consigo segui-lo para além de umas linhas sem que a minha mente, captado um pensamento que o texto lhe propõe, ou um sentimento, ou uma interrogação, ou uma imagem, não saia pela tangente e salte de pensamento em pensamento, de imagem em imagem, num itinerário de raciocínios e fantasias que sente necessidade de percorrer até ao fundo, afastando-se do livro até perdê-lo de vista». Já o segundo leitor, por razões idênticas, faz o oposto: “Por isso a minha atenção, ao contrário do que dizia, senhor, não pode separar-se das linhas escritas nem por um instante. Não devo distrair-me se não quero descurar nenhum indício precioso”.

Um outro diz que “em cada releitura parece-me ler pela primeira vez um livro novo. Serei eu que continuo a mudar e vejo coisas de que antes não me tinha apercebido? Ou a leitura é uma construção que toma forma pondo em conjunto um grande número de variáveis e não se pode repetir duas vezes segundo o mesmo desenho?”.
Termino com uma frase do sétimo leitor: “O sentido último para que remetem todas as narrativas tem duas faces: a continuidade da vida e a inevitabilidade da morte”.
Que boas conversas se podem ter à volta deste livro!