Logo nos primeiros meses do seu pontificado, o Papa Francisco deu sinais inequívocos da sua inquietação com a economia da exploração e da desigualdade que é um dos paradigmas do nosso tempo, digamos que o sistema económico dominante aposta em agravar as condições de vida da maioria das populações. Sobretudo os pensadores católicos ultraliberais dos EUA acusam o Papa de demonizar o capitalismo, quando este, segundo estes críticos, é o único sistema que permite aos pobres serem menos pobres. Estas críticas emparceiram com a opinião dos conservadores para quem falar da pobreza é consentido desde que não ponha em causa o sistema económico e financeiro. É sobre estes conteúdos que vale a pena ler “Papa Francisco, esta economia mata”, por Andrea Tornielle e Giacomo Galeazzi, Bertrand Editora, 2016.
Uma linha que atravessa este trabalho documental é a doutrina social da igreja, a partir de Leão XIII, aprofundada por Pio XI e sistematicamente invocada por Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI e agora o Papa Francisco, e constata-se que existe uma linearidade doutrinal. Poucos dias depois de ser Papa, ele explicou porque escolhera o nome de Francisco: a pensar nos pobres, no homem da paz, Francisco de Assis foi o santo que cantou a Criação e que exaltou uma igreja para os pobres. O seu documento “A alegria do Evangelho” também foi escrutinado negativamente pelos tradicionalistas e apologistas do sistema capitalista sem restrições. Francisco foi preparando o terreno dizendo que uma Igreja fechada é uma Igreja doente, convida a sair os cristãos para espalharem a nova da alegria e dos valores evangélicos. Como escrevem os autores, “Francisco reconduz esta atenção aos pobres, esse empenho à sua original raiz evangélica”. E estes autores lembram uma frase da encíclica Rerum Novarum: “Os homens das classes inferiores estão, na sua maior parte, numa situação de infortúnio e de miséria imerecida… Os trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça de uma concorrência desenfreada”. Pio XI, na encíclica Quadragesimo Anno, apelidara de “imperialismo internacional do dinheiro”, o modelo de economia especulativa que empobrecera repentinamente milhões de famílias.
A grande contestação virá com a carta apostólica “A Alegria do Evangelho”, aí Francisco fala da economia do Ocidente como a economia que mata, e correlaciona a justiça social, os direitos humanos, a vida familiar, cada vez mais sujeitos ao “império do dinheiro”. Logo no início das suas viagens o Papa refere-se ao sistema económico como “a bolha da indiferença” ou a globalização da indiferença. Viaja por Lampedusa, pela Sardenha, e caustica a cultura do egoísmo, a exploração dos pobres, os sistemas económicos injustos. Era o fermento do seu primeiro documento programático, trata-se de uma exortação para que os homens combatam o medo e o desespero, para que haja uma viragem em todo o processo civilizacional, em que o dinheiro ganho não se esqueça de também ser posto ao serviço dos outros. Os autores irão entrevistar personalidades conceituadas nas esferas do social do económico e do financeiro sobre o pensamento de Papa Francisco, os entrevistados explicam como este pensamento encaixa na doutrina social da Igreja e interpreta o tempo presente, Francisco alerta para os problemas dos pobres, para a regulamentação dos mercados, para o primado da justiça social. Francisco convida a trabalhar na longa duração, privilegiando o começo de novos processos em lugar da ocupação dos espaços do poder, apelando a uma unidade que prevaleça sobre o conflito, exaltando a realidade por ser mais importante que a ideia e definindo como princípio básico: o todo é superior à parte. Enfim, o mercado não é apenas o lugar onde se estabelece a concorrência entre produtores, vendedores e consumidores. O mercado é também expressão de uma comunidade que permite e apoia o andamento da economia. É um convite a que se construa um discurso no qual as ideias económicas estejam sempre a dialogar com a realidade, sem a ocultarem. É esta a matriz que Francisco intenta promover para que se construa hoje e para as gerações futuras uma sociedade mais justa e inclusiva.
*Assessor do Instituto de Defesa do Consumidor e consultor do POSTAL