Quando o comentário televisivo se transforma em propaganda, o espetador perde o direito à verdade.
É natural, como já aqui o escrevemos noutra ocasião, que, em particular, perante uma qualquer guerra, como a observada na Ucrânia, cada cidadão formule juízos de valor sobre a mesma, à luz dos princípios que faz seus, da sua cultura e que, a partir deles, passe a desejar que os acontecimentos se desenrolem num dado sentido. Mas desejar não é analisar. E muito menos informar.
Ora, o que se observa hoje nas televisões é uma proliferação de comentadores que não deixam de confundir os seus desejos com a realidade. Não se limitam a interpretar os factos — moldam-nos. E fazem-no com uma convicção que não nasce da análise, mas da militância. Pior: receia-se que não falte entre eles «avençados» para repetir narrativas que servirão interesses pouco claros. O espetador, nesse cenário, deixa de ser informado para ser catequizado.
A verdade não tem obrigação de agradar. O comentador sério sabe disso. O propagandista, não. Este torce os factos até que sorriam ao seu guião. E, assim, o espaço público transforma-se num teatro de sombras, onde a objetividade é substituída por encenação. O espetador merece mais: merece a verdade tal como se apresenta, para que possa ajuizar por si. Gostemos ou não dela.

Jurista
A personalização de decisões judiciais é um vício antigo da imprensa portuguesa. Quando o acórdão agrada, fala-se no 'Tribunal da Relação'. Quando incomoda, é obra de 'Ivo Rosa'
Não se exige neutralidade absoluta — ela é, aliás, uma ilusão. Mas exige-se honestidade intelectual. Que se revele a verdade, sem maquilhagens. E que se respeite o espetador como cidadão pensante, não como consumidor de propaganda.
Em paralelo e como se não bastasse, vivemos tempos em que o jornalismo, outrora guardião da verdade e fiscal do poder, se vê reduzido a figurante num espetáculo de cliques e emoções baratas. A manchete já não informa: seduz (1) . O repórter já não investiga: interpreta. E o público, entre o cansaço e o vício, consome uma dieta mediática rica em calorias emocionais e pobre em nutrientes factuais.
A fronteira entre jornalismo e entretenimento foi demolida com a subtileza de um bulldozer em hora nobre. O que antes exigia apuração, contraditório e contexto, hoje resolve-se com um painel de comentadores em modo “quem grita mais alto”. A notícia tornou-se performance. O jornalista, influencer. E o critério editorial, algoritmo.
A diversidade temática e o pluralismo ideológico são hoje espécies ameaçadas. A concentração de meios, aliada à lógica do mercado, produz uma paisagem informativa monocromática: os mesmos temas, os mesmos ângulos, os mesmos silêncios. A exceção? O escândalo. Esse, sim, tem lugar cativo — desde que rentável.
Confiança e credibilidade são os pilares do jornalismo. Quando cedem, tudo o resto é ruína. E têm cedido. A opacidade sobre fontes, a promiscuidade com o poder, os erros não assumidos e a espetacularização da tragédia corroem a relação com o público. O jornalismo que não se explica, não se corrige, não se responsabiliza, não se salva.
Há ainda ilhas de rigor, redações que resistem, jornalistas que investigam, editores que pensam. Mas são cada vez mais cercados por uma maré de conteúdo que se diz informativo, mas não passa de entretenimento disfarçado. O desafio é claro: recuperar o jornalismo como serviço público, como espaço de cidadania, como exercício de responsabilidade.
Porque sem jornalismo, não há democracia. E sem confiança, não há jornalismo.
(1) «Ivo Rosa contraria MP e descongela conta com 4 milhões». Eis o título. Breve, incisivo, e — como convém à imprensa dita séria e não padecendo dos mesmos males apontados às redes sociais, pois claro — ligeiramente enganador. A decisão judicial em causa foi tomada por três desembargadores da Relação, mas o título atribui-lhe uma autoria singular, quase messiânica. Como se o juiz Ivo Rosa tivesse, sozinho, destrancado os cofres da fortuna alheia com um estalar de dedos e um sorriso de ironia.
Na realidade, trata-se de um acórdão subscrito por três magistrados. Ivo Rosa foi o relator, sim — alguém tinha de redigir o texto — mas a decisão é coletiva. O relator não decide sozinho, não impõe vontades, não distribui milhões como quem serve café. A função do relator é técnica, não tirânica.
Mas tal imprensa, porém, prefere o rosto à estrutura, o nome à norma. E Ivo Rosa, pela notoriedade acumulada em processos mediáticos, tornou-se personagem recorrente na dramaturgia judicial dessa mesma imprensa. É o juiz que “contraria”, que “descongela”, que “liberta”, que “desafia” — mesmo quando a decisão é colegial. Um protagonista de novela jurídica, com direito a close-up e trilha sonora, ainda que o guião tenha sido escrito a várias mãos. Mas isso não rende manchete.
A personalização de decisões judiciais é um vício antigo da imprensa portuguesa. Quando o acórdão agrada, fala-se no “Tribunal da Relação”. Quando incomoda, é obra de “Ivo Rosa”. A técnica jornalística é clara: atribuir a decisão ao nome mais sonante, mesmo que isso implique uma simplificação abusiva — ou uma distorção factual.
Este tipo de manchete não é apenas impreciso. É perigoso. Alimenta a ideia de que os tribunais funcionam por capricho individual, que a justiça é uma arena de egos e não um sistema de garantias. E, claro, reforça a polarização: há quem veja em Rosa um herói da legalidade, há quem o acuse de sabotagem institucional. A imprensa, ao escolher o nome em vez da norma, contribui para essa guerra de narrativas.
Não se trata de defender Ivo Rosa — nem de o condenar. Trata-se de exigir rigor. Se a decisão é colegial, que se diga. Se há relator, que se explique o papel. Se há polémica, que se contextualize. O jornalismo não deve ser cúmplice da simplificação, nem refém da dramatização. Deve informar, provocar, esclarecer — sem cair na tentação do bode expiatório.
E já agora, que tal uma manchete mais honesta, «Tribunal da Relação descongela conta milionária»?
Mas isso não venderá tão bem.
Nota marginal:
Em Portugal não há, como se ensina nos manuais, poder legislativo, executivo e judicial. Os verdadeiros, os únicos capazes de mobilizar o povo com paixão, disciplina e comparecimento massivo — faça sol ou chova, com chapéu-de-sol ou guarda-chuva — são o Benfica, o Sporting e o Porto!
Com respeito a eles, sim, há voto, há fé, há militância. Neles, ninguém se abstém. Não há lutas de classe, mas há classes em luta. E quando há eleições internas, são mais renhidas que as legislativas. O povo reconhece-os, segue-os, defende-os com unhas e dentes. São os verdadeiros pilares da República emocional.
Talvez esteja, portanto, na hora de rever a Constituição: substituir a Assembleia, o Governo e os Tribunais, por três Assembleias Gerais – no Estádio da Luz, em Alvalade e no Dragão.
A democracia agradecerá e o povo, esse, finalmente, participará!
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