Visitei em agosto de 2014, no pavilhão preto do Museu da Cidade de Lisboa, a exposição “Portugal de Artur Pastor”, conhecia-lhe algumas imagens, senti-me embasbacado pelo seu génio, folheei os seus livros, é graças a estes memoráveis registos que hoje dispomos de uma quantidade fabulosa de imagens de um Portugal agrícola e piscatório desaparecido ou reformulado; o fotógrafo reteve paisagens, fainas, momentos de religiosidade, usos e costumes, praças e avenidas, o preto e branco é a tonalidade favorita, mas não deixa de fascinar o modo como ele manipulou a cor, em tudo foi um mestre , intuitivo no disparo instantâneo, no momento certo, aproveitando galas encenadas, caso da visita de Isabel II a entrar no Cais das Colunas em 1957; a Nazaré nas suas mãos para sempre ficou mítica, como Évora ou o Algarve, incluindo um dos seus derradeiros trabalhos, a visita à Expo 98. Enfim, é o grande cronista fotográfico de três décadas (o cume de uma peregrinação territorial impressionante), embora tenha trabalhado por 60 anos, percorrendo o interior e os meios urbanos, pondo ênfase na dureza e no risco aonde vamos buscar a nossa alimentação, mostrando artífices a fabricar rolhas ou a fundir guizos, como soberbas são as imagens que nos deixa da Estação Agronómica Nacional. É um todo, um retrato do país que ele percorreu de lés a lés, sem rival.
Este belíssimo álbum tem um título sóbrio “Artur Pastor”, é nome que identifica a volumosíssima e indispensável obra, edição da Fundação Francisco Manuel dos Santos em colaboração com a Câmara Municipal de Lisboa, 2021. Aviso já que se trata de obra que só se empresta com cuidado, é indispensável nas nossas bibliotecas. A capa é eloquente, capta o lançamento de foguetes na festa de Nossa Senhora da Assunção, Póvoa de Varzim, 1954.
A primeira questão que se pode pôr é apurar por que tardou o reconhecimento do seu génio, este país possui grandes mestres (como exemplifico: Eduardo Gageiro, Victor Palla, Sena da Silva, Gérard Castello-Lopes, Luís Pavão, Valter Vinagre, Inácio Ludgero…), mas cartógrafo como este ninguém se lhe aparenta. Foi funcionário público e muitos dos seus registos foram publicados em edições oficiais, em circunstância alguma, porém, pode ser tratado como apresentador da ideologia do Estado Novo. Começou muito novo, aproveitou a tropa em Tavira e logo aqui temos um legado precioso, as fotografias de pesca do atum na região, ele sentiu-se atraído pelo copejo e mostrou que tinha pendor para as belíssimas imagens. A luz do Sul será um foco da sua atração. O fotógrafo Luís Pavão dirá deste seu trabalho: ”A proximidade que Pastor revela dos campos e das fainas agrícolas são singulares e destacam-nos dos seus congéneres deste período. No seu género realista ou naturalista, ostentam uma simplicidade e uma proximidade ao assunto fotografado, que nos parecessem janelas para o mundo rural. ”É um profissional com atividade artística. Começa a trabalhar em 1950 como regente agrícola, colocado no Posto Experimental de Portalegre. “Deste período temos imagens das paisagens transmontanas, dos nevões e dos monumentos; mas a sua atenção centra-se depressa no campo e na produção agrícola. Muda-se para Lisboa em 1953 e sugere a criação do Arquivo Fotográfico na Direção-Geral dos Serviços Agrícolas”.
Começa a odisseia, a peregrinação pelo país, mostra-nos laboratórios, estações de fruticultura, serviços de ensaio de sementes, enfim, o que o Estado fazia para a agricultura, isto a par da multidão de registos das taregas agrícolas, das próprias indústrias. Como também comentará Luís Pavão: “São imagens profissionais, técnicas, realizadas por Pastor sem aspirações artísticas ou expositivas. São o testemunho mais forte que nos deixou e as que mais atingem a nossa sensibilidade hoje. Através delas, os Portugueses olham para o seu país, para descobrirem quanto mudou e também quanto foi delapidado nos últimos trinta anos.” E Pavão recorda que Pastor não foi um caso único nos levantamentos fotográficos, lembra-nos, noutra vertente, o importantíssimo trabalho de Michel Giacometti na recolha da música popular.
Seguem-se os livros, estreia-se com “Nazaré”, uma abundância de instantâneos que ele capta ao longo de meses, mas também há trabalho de encenação com pose de roupas típicas; segue-se o livro “Algarve”, desta vez não está focado naquela gente do mar e num quadro etnográfico específico, percorre a região, agora primam o homem e a natureza, as zonas agrícolas, a pesca artesanal, as tipicidades da arquitetura, sente-se que está a trabalhar deslumbrado, ele próprio escreve: “A luz é quase uma alucinação. Desvenda-nos um panorama de estonteantes sensações. A atmosfera é de uma deslumbrante nitidez. O longe é próxima, a visão completa. A pureza reconfortante do ar parece alimentar-nos.” É já um fotógrafo consagrado, convidado para exposições. Reforma-se em 1983. Ficara conhecido como o homem Rolleiflex, agora trabalha com Nikon, sonha a publicação de livros sobre vila e cidades de Portugal. Deixa um fundo de registos riquíssimo, milhares de imagens do norte de Portugal, sempre do Algarve, mas também de Lisboa e de Óbidos.
Artur Pastor filho fala do seu pai, a casa de família era mais um estúdio que outra coisa: “As fotografias foram invadindo todos os recantos e, numa casa quem em princípio parecia grande, pouco espaço sobrava para outros elementos. Nos roupeiros, a roupa lutava com as fotografias e no quarto dito de arrumações empilhavam-se pacotes de fotografias primorosamente embalados. Comprava incessantemente móveis para arquivar fotografias e algumas divisões da casa pareciam exigir a perícia de uma gincana para serem atravessadas”.
Foi o itinerário de um franco atirador, a despeito das suas obrigações de funcionário público. Ao longo deste precioso álbum fala-se muito do país de Artur Pastor, das cenas épicas de pesca, de campos após a chuva, cenas de lirismo naturalista em plena sementeira, apanhas, cultivos, em tudo parece haver um olhar de orgulho por quem vai ficar na imagem. Como escreve Cristiana Bastos: “As redes que atravessam as praias e unem os homens são bonitas, e eles felizes. As saias sobrepostas e bordadas das mulheres que esperam os homens e os peixes na praia da Nazaré são bonitas, e elas felizes. As geometrias criadas pelos peixes dispostos na areia, fazendo dezenas, prontos a ser contados e comprados, não podiam senão ser lindíssimas e esteticamente felizes. Este é o país de Artur Pastor, sem cheiros nem mágoas, sem fome nem dor, sem exploração nem rancor. Paira neste conjunto uma atmosfera de felicidade pacata, alegre contentamento, reduzido o horizonta para a proximidade, quase nos antípodas do documentário neorrealista que lhe é contemporâneo, do naturalismo literário que o antecedeu, ou das fotografias de denúncia social que os reformadores bem-intencionados capturavam no que para eles era o outro lado da vida”. Uma obra que não esconde o entusiasmo de mostrar um país em marcha e a alma e as cores da sua gente.
De leitura obrigatória.