Soam-lhe rumores de que virá aí o serviço militar obrigatório. Contara-lhe uma vidente, com o demónio no corpo, que as aves de rapina de vidas novas viriam buscar, de novo, os moços para a refrega da gente graúda, do Ministério da Guerra.
Assaltado pelo terror do rufar dos tambores, saltavam-lhe perdigotos da boca, enraivecido: – É uma porra! Vem aí a guerra para desarrumar as nossas vidas – diz ele, em tom de desespero, perante a possibilidade de tamanho desvario.
Abomina a ideia de falarem de liberdade e, no fim de contas, só lhe darem a escolher os pavores do inferno. Ama a única vida que tem e desabafa, indignado: – Prefiro ser um cobarde vivo a um herói morto. Afinal a vida fez-se para a vivermos.
Até agora, apenas conhecera as guerras futebolísticas, aquelas para que não tendo sido recrutado, se acha insaciável na construção de derrotas forçadas do adversário. Ele, como os demais, estará sempre disponível para abraçar apupos, com uma vertigem de abutre, se os do seu clube saírem derrotados dos jogos. Todos estarão sempre aptos a banir e desfazer derrotas, para o que se dispõem ser coveiros de árbitros e flageladores de jogadores do seu clube. Se, no futebol, pode atear fogueiras com vaticínios sombrios, na guerra tudo será diferente. Todos assumirão desastrosas proporções para as vidas que nela participarem.
E zurze: – Andamos nós, com tanto sacrifício, a aprender o abecedário da vida, a ler português, a contar e a escrever, dotados de elevada educação, cultura, e de grande delicadeza de trato, a aceitar a escolaridade como processo civilizacional, para isto? Tornam-nos uns gentlemen bem-educados, civilizadíssimas criaturas para, de seguida, nos desbotarem como bárbaros guerreiros, prontos para limpar o sebo àqueles que, como nós, vão para a guerra dos senhores que a fazem levantando o dedo mindinho.
Está convicto de que os conflitos armados são um passo atrás na vida dos homens, o eterno retorno que Nietzsche tinha garantido que faria parte da História dos humanos.Talvez que eles só tenham conhecido a paz como aquilo que ela sempre fora, uma fase letárgica da guerra.
Uma vez investido de um içar de bandeiras na formação laica da sua farda, não acode mais à guerra com evocações de regresso ao sagrado, embora sentisse mais segurança se vivesse perto de Deus, tendo-o como amuleto. Por isso, ao dessacralizar a guerra, abomina o homem desnudado na sua barbárie mais absoluta.
Lamenta que os deuses sempre tenham andado apressados, visitando os humanos de passagem e deixando-os entregues a escaramuças. Em todo o tempo, eles sempre tiveram o hábito de pedir a acólitos que escrevessem sobre si próprios e depois viraram-lhes as costas e partiram. Os deuses sempre tinham sido assim, em qualquer religião. Todavia, para consolo da guerra, sempre ficariam autoridades para lhes dar lustre às medalhas do peito, ou para aspergirem água benta nas suas campas.
– Pobres vidas as nossas! Apesar de tudo, sempre será bom contarmos com o aconchego das igrejas – lamuriava.
Da vida do avô, na guerra colonial, ainda se lembra como eram sofridas aquelas formas de os moços dizerem adeus aos familiares, despedindo-se das aldeias como se elas fossem o seu cordão umbilical. Alguns levavam um pedacinho de terra comprimida num pequeno frasco desusado de vacina, como se transportassem consigo o quinhão dos seus antepassados. Toda a aldeia ficava muda, silenciada com a sua partida. Quem sabe se regressariam, se não seria uma despedida de vez.
Agora, moço feito soldado, davam-lhe uma farda, uma arma, artilharia pesada, um drone feito bomba e um farnel prá viagem, com o corpo disponível para tarefas de cangalheiros.
Iriam pedir-lhe, como a tantos outros anónimos, que morressem como tordos, em guerras fratricidas, pela Pátria. Triste desdita a sua, que tinha por sina pensar que seria tão morto quanto os que ele iria ajudar a enterrar.
Era nefasto pensar que os companheiros, a quem ele iria abrir covas para corpos cravados de balas, também tinham misturadas nas veias as mesmas incontáveis etnias: indiana, negra, árabe, branca, tudo ao molhe na hibridez dos corpos contemporâneos.
Na inspeção, a endemoninhada vidente já lhe tinha segredado que, um empedernido sargento, iria dar-lhe os primeiros comandos de voz: – Você não percebe nada disto, tá visto, no seu desrespeito patriótico de não querer fazer a guerra. Nela, é terminar os serviços e esfregar as mãos de contente, percorrendo os olhos pelos destroços. Na guerra não há lugar a mariquices, desânimos ou suplicas. É matar ou morrer, sem esconder a cara como se tivesse vergonha de ser olhado pelos deuses.
E ele, desesperado, matutava: – Abutres, vocês são todos uns abutres, é o que é! Que gozo dará a um familiar receber uma medalha de um filho morto? E exclamava: – Que puta de hipocrisia continua a lavrar por esse mundo fora, quando a urbe de hoje tem mais que fazer que pensar nos seus defuntos. Depois vêm as mensagens entregues ao Criador, como se ele ali estivesse disponível para lê-las.
Na sua raiva explosiva, questionava: – Que diabo vai na cabeça dos homens, que não param com a asselvajada truculência da ceifa das vidas uns dos outros? Porquê continuam sufocados com a brutalidade de agressões próprias da irracionalidade destrutiva da barbárie, concebida nos conchavos políticos?
Cansado, insistia, por fim, de voz embargada: – Levam-nos para os pavores do inferno, onde se apagam trilhos e pegadas de gente, para fazerem da Terra um cemitério de desvarios, onde civilizados e bárbaros se encontram na mesma viagem sem regresso. Depois, com um RIP para aqui, outro para ali, enxertam o descanso das consciências.
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