Um cidadão espanhol acreditou ter encontrado um bom negócio imobiliário nas Ilhas Canárias, mas a sequência de transferências, promessas e explicações vagas acabaria por transformar-se num dos processos mais insólitos dos últimos anos. A história, iniciada em 2020, terminou com um prejuízo de quase um quarto de milhão de euros e um debate jurídico que continua a dividir opiniões.
Tudo começou em novembro de 2020, quando o homem foi convencido a transferir 50 mil euros para comprar um bungalow em El Cotillo, na ilha de Fuerteventura. A operação parecia legítima e o suposto intermediário mostrava-se confiante e experiente.
Nos meses seguintes, a vítima voltou a enviar dinheiro: 60 mil euros em janeiro de 2021 para adquirir quatro apartamentos em Sardina del Sur, e 48 mil euros em abril para alegados negócios em Santa Cruz de Tenerife, de acordo com a revista especializada em economia e negócios Executive Digest.
Em junho do mesmo ano, o mediador afirmou precisar de liquidez e recebeu mais 48 mil euros, e, já em 2022, convenceu o investidor a transferir outros 42 mil euros para uma nova oportunidade em Costa Calma.
Ao todo, o homem enviou 246 mil euros, acreditando que o dinheiro estava a ser aplicado em imóveis nas Canárias. Quando começou a desconfiar de que os negócios nunca existiram, apresentou queixa em tribunal. O acusado acabaria por devolver 100 mil euros entre novembro de 2022 e agosto de 2023, mas isso não foi suficiente para apagar as suspeitas.
Tribunal considera vítima imprudente
O caso deste negócio imobiliário chegou ao Tribunal Superior das Canárias, que analisou as transferências e as comunicações entre as partes. A decisão acabou por surpreender: o tribunal absolveu o arguido e considerou que a vítima não tomou as “precauções mínimas” para evitar ser enganada.
Aplicando a chamada doutrina da autoproteção, os juízes concluíram que o lesado teve tempo, informação e meios para perceber o risco, mas ainda assim optou por continuar a enviar dinheiro.
Razões da decisão do tribunal
De acordo com a mesma fonte, o acórdão sublinhou que as operações decorreram durante um ano e meio, envolveram grandes quantias e “muitas oportunidades para perceber o engano”. O tribunal afirmou ainda que “nenhuma pessoa minimamente prudente teria caído no erro” e deixou implícito que o caso poderia esconder motivações de outra natureza, talvez económicas ou pessoais.
A decisão gerou forte debate em Espanha, reabrindo a discussão sobre até que ponto a vítima pode ser responsabilizada pela sua própria falta de cautela. Juristas citados pela mesma fonte recordam que a doutrina da autoproteção tem sido invocada em vários casos de burla e investimento fraudulento, defendendo que a boa-fé deve coexistir com a diligência mínima exigida a qualquer cidadão.
E se o caso fosse em Portugal?
Em Portugal, um processo semelhante teria tratamento diferente. O arguido poderia ser acusado de burla qualificada, prevista no artigo 218.º do Código Penal, se se provasse que agiu com intenção de enganar e obter vantagem patrimonial. A pena pode chegar a oito anos de prisão, dependendo do montante e do grau de premeditação.
Por outro lado, se o tribunal entendesse que a vítima contribuiu para o resultado ao agir de forma imprudente, poderia aplicar o artigo 570.º do Código Civil, que prevê a culpa concorrente. Neste caso, a indemnização seria reduzida, uma vez que o lesado também não cumpriu o dever de cautela, de acordo com a fonte anteriormente citada.
Se não houvesse provas claras de dolo, o litígio poderia passar da esfera penal para a civil, sendo tratado como enriquecimento sem causa (artigo 473.º do Código Civil). Neste cenário, a vítima teria de provar que entregou o dinheiro sem contrapartida real, o que é muitas vezes difícil em transações informais.
Entre a confiança e a responsabilidade
A história levanta uma questão comum a ambos os países: até onde vai a responsabilidade de quem é enganado? Em Espanha, a doutrina da autoproteção tem ganho terreno, colocando sobre a vítima o dever de verificar, confirmar e desconfiar.
Já em Portugal, a lei continua a proteger quem é burlado, mas também reconhece que a imprudência pode limitar a compensação, de acordo com a Executive Digest.
Num tempo em que os esquemas de investimento se multiplicam, tanto online como no mundo real, a fronteira entre ingenuidade e culpa torna-se cada vez mais ténue. O caso das Canárias mostra que, em certas circunstâncias, a Justiça pode considerar que o maior erro não é o engano, mas a confiança.
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