Nem sempre o bom senso é devidamente recompensado. Um trabalhador francês acabou despedido depois de denunciar o colega de serviço, que acreditava estar a roubar. O caso, que remonta a 2022, acabou nos tribunais e gerou um debate sobre até que ponto uma denúncia feita de boa-fé pode justificar uma sanção laboral.
Durante um turno noturno numa fábrica no norte de França, o trabalhador viu um colega sair do recinto com várias barras metálicas. Convencido de que se tratava de um furto, comunicou de imediato o sucedido ao chefe de equipa. Este explicou-lhe que se tratava de uma operação autorizada pelo departamento de manutenção, uma vez que o metal estava destinado ao contentor de lixo.
Apesar disso, e ainda desconfiado, o trabalhador decidiu, na manhã seguinte, contactar diretamente o diretor da fábrica. Classificou o que viu como um “roubo”, explicou que tinha avisado o seu superior e chegou mesmo a tirar fotografias para o comprovar. A iniciativa não agradou ao chefe de equipa, que o censurou por ter chamado o diretor ao caso, assegurando que “tudo estava resolvido”.
Discussão e despedimento
Na noite seguinte, a tensão entre o denunciante e o colega que transportara o material resultou num confronto físico, de acordo com o jornal digital Noticias Trabajo. Após o trabalhador voltar a acusar o outro de “roubar material”, o desentendimento transformou-se numa luta entre ambos. Poucos dias depois, o trabalhador que havia denunciado a situação recebeu uma carta de despedimento por falta grave, sob a justificação de ter provocado a altercação e ignorado instruções superiores.
O homem, que trabalhava na fábrica desde 2013, afirmou ter agido apenas para proteger a empresa. “Só informei de um facto”, disse, sublinhando que não teve qualquer intenção de causar danos.
Primeira decisão desfavorável
O tribunal de primeira instância não lhe deu razão. Considerou o despedimento procedente e condenou-o ainda a pagar 1.500 euros à empresa. O trabalhador recorreu então para o Tribunal de Apelação, argumentando que a sua denúncia fora feita de boa-fé e que estava protegida pelo direito à liberdade de expressão consagrado no Código do Trabalho francês.
Por seu lado, a empresa defendeu que o funcionário tinha um “comportamento provocador” e que as suas más relações com colegas já haviam sido mencionadas numa avaliação interna de 2021, na qual fora avisado para “não menosprezar os outros”.
A decisão do Tribunal de Apelação
O advogado do trabalhador sustentou que o seu cliente conservava o direito à liberdade de expressão “salvo em caso de abuso”, ou seja, desde que não proferisse declarações “injuriosas, difamatórias ou excessivas”. Acrescentou ainda, segundo a mesma fonte, que o seu cliente “apenas expressou uma dúvida, sem intenção de causar dano”, e que “uma denúncia leal, ainda que torpe, não deve voltar-se contra quem a faz”.
O tribunal concordou com esta posição. Considerou que a empresa não apresentou qualquer prova de que o trabalhador tivesse agido de má-fé e sublinhou que “o simples facto de ter contactado a direção para denunciar os factos, após informar o seu chefe de equipa, não pode ser considerado uma falta que justifique uma sanção, e muito menos um despedimento”.
Uma indemnização significativa
A sentença declarou o despedimento sem causa real e obrigou a empresa a indemnizar o trabalhador em 25.480 euros, valor que inclui 5.771 euros referentes ao aviso prévio, 577 euros por férias não gozadas, 6.132 euros de indemnização legal por despedimento, 10.000 euros por danos e prejuízos e 3.000 euros relativos às custas judiciais.
O caso reforça a ideia de que a boa-fé continua a ser um princípio essencial nas relações laborais e que uma denúncia honesta, mesmo que infundada, não deve ser punida como se fosse um ato de má intenção, de acordo com o Noticias Trabajo.
E se acontecesse em Portugal?
Se um caso semelhante ocorresse em Portugal, o seu enquadramento legal seria analisado à luz do Código do Trabalho (CT) e, em certos aspetos, do Código Penal.
A legislação laboral portuguesa protege o trabalhador que atua de boa-fé ao comunicar irregularidades na empresa. O artigo 29.º do CT proíbe expressamente qualquer sanção ou despedimento com fundamento em denúncia legítima de infrações. Por sua vez, o artigo 351.º define o despedimento por justa causa como aquele que resulta de um comportamento culposo do trabalhador que torne impossível a manutenção da relação laboral, algo que teria de ser provado pela entidade empregadora.
Além disso, a Lei n.º 93/2021, que transpõe para o ordenamento português a Diretiva Europeia (UE) 2019/1937, protege os denunciantes de infrações (os chamados “whistleblowers”). Esta lei garante que quem comunica de boa-fé uma irregularidade cometida no âmbito profissional não pode ser alvo de represálias, incluindo despedimento, suspensão ou qualquer forma de discriminação.
Difamação ou abuso de liberdade de expressão
No caso de o trabalhador ser acusado de difamação ou de abuso de liberdade de expressão, o Código Penal, no artigo 180.º, exige que haja intenção de ofender ou caluniar, o que excluiria uma denúncia feita com base em suspeita legítima.
Se o tribunal português considerasse que o trabalhador agiu de boa-fé, o despedimento seria considerado ilícito ao abrigo do artigo 381.º do CT, obrigando a empresa a reintegrar o trabalhador ou, em alternativa, a indemnizá-lo com base na antiguidade e nas retribuições devidas, podendo ainda acrescer compensação por danos morais.
Resumindo, num cenário idêntico em Portugal, o tribunal avaliaria a intenção e a boa-fé do trabalhador. Caso ficasse demonstrado que a denúncia foi feita com o intuito de proteger a empresa e sem propósito difamatório, o despedimento seria muito provavelmente declarado ilegal, com direito a indemnização ou reintegração, conforme a opção do trabalhador.
Importância deste tipo de casos para a atualidade
Este caso ganha particular relevância na atualidade, numa altura em que as denúncias internas e a transparência nas empresas estão sob maior escrutínio. Num contexto em que a legislação europeia e portuguesa reforça a proteção dos denunciantes, a decisão do tribunal francês recorda que a boa-fé continua a ser um valor essencial nas relações laborais e que punir quem tenta agir corretamente compromete a confiança dentro das organizações.
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