Loulé goza do privilégio de ser servida pela estação ferroviária Loulé-Praia de Quarteira e, por conseguinte, de entrar na nossa lista de localidades a visitar neste percurso costa-a-costa(1). Mas, já se sabe, uma coisa é a designação de uma estação e outra bem diferente é a maior ou menor conveniência da sua localização.
O caso é que há uma distância de uma boa meia dúzia de quilómetros entre a dita estação e a cidade de Loulé, que não é nem suficientemente curta para ser feita a pé com facilidade, nem suficientemente longa para desistirmos da visita. Felizmente que, quando estávamos prontos para palmilhar um légua até à cidade (pois que remédio…), surgiu na praça da estação um táxi, tendo ao volante uma espécie de reencarnação de Quasímodo o que, porém, não nos impediu de embarcar de imediato no bem-vindo veículo.
Estamos habituados a passear num Algarve chão, por vezes a distinguir aqui e ali mas sempre lá ao longe, silhuetas de montanhas e montes, difusos na distância. Não é o caso da cidade de Loulé, alcandorada a uma altitude de 170 metros. Dizia o Manuel da Fonseca, numa visão com quase quarenta anos, que “Serra acima, como de um alto terraço a meio dos montes, Loulé defronta uma vasta paisagem que vai, em declive, por cerros, pomares, hortas, até ao mar.”(2)
Todavia, a visão do escritor nos dias de hoje seria seguramente muito diferente. Os pomares e as hortas foram substituídas pelo betão, pelo tijolo, pelo asfalto e por tudo aquilo que conhecemos pelo verbo urbanizar. Mas este progresso deverá agradar aos povos, pois Loulé é uma das poucas cidades que tem vindo a aumentar a sua população desde os anos oitenta, inclusivamente na faixa etária dos 0-14 anos, a que mais importa para o futuro.
Loulé, diga-se de passagem, é uma urbe muito antiga. Foi romana, foi moura, e foi cristã a partir de 1249, após ter sido conquistada no tempo do Rei D. Afonso III, com o auxílio do fortíssimo braço de D. Paio Peres Correia, cavaleiro e mestre da Ordem de Santiago. Teve momentos de esplendor, até o terramoto de 1755 a destruir de forma cruel, como aliás a metade do Algarve.
Ultimamente, o turismo tem puxado por este imenso concelho e sobretudo pelo seu litoral, substituindo alguma vaga indústria que ainda resistia às modas dos novos tempos. Até a extração do sal gema parou por falta de incentivo económico, de modo que estou crente que se a torneira do turismo um dia se fechasse, morria de fome meio Concelho.
O nosso condutor, que nos tinha vindo a falar das dificuldades da vida, pára à beira de um bonito arco escavado numa muralha. “A muralha moura”, esclarece ele, e continua: “Agora é só irem por aí fora pelas ruazinhas até ao Castelo. É do que os turistas mais gostam.”
Passámos sob o robusto arco, não sem que o taxista todo esticado no banco ainda nos tenha bradado em alta-voz: “Ide também ao Jardim dos Amuados! É logo à esquerda.”
Iremos, iremos, amigo Quasímodo. Obrigado. Obrigado…
Seguimos o avisado conselho e, curiosamente, também os passos do Manuel da Fonseca: “O arco de grossas paredes caiadas, por onde se passa para a Igreja Matriz. O minúsculo e íntimo Jardim dos Amuados. E o vale. O bonito vale que o defronta, e fica entre a vila e uma encosta de cabeços nus, angulosos.”(3)
Pois, mas nós, infelizmente, apenas conseguimos ver bocadinhos desse panorama, porque o que faltava estava oculto por construções diversas. Todavia, na colina fronteira, passado o grande vale, na “encosta de cabeços nus”, reparo num grande edifício todo redondeza e brancura. Que seria aquilo? Um disco voador?
“É a nova ermida da Nossa Senhora da Piedade a quem os louletanos chamam Mãe Soberana”, explicou-me o António, que é uma fonte inesgotável de informações interessantes, “é um culto com uma data de séculos. Todas as primaveras fazem uma grande procissão e transportam lá para cima a imagem da Nossa Senhora num andor pesadíssimo. Vem gente de todo o lado. Multidões! E há oito tipos fortalhaços que correm por uma ladeira acima com o andor aos ombros. Extraordinário! Há uns tempos fiz imensas fotografias dessa festa. Posso arranjar algumas, se quiseres. Ou então voltamos cá na primavera.”
Fiquei a ponderar na oferta do meu distinto amigo, enquanto nos pusemos a andar pela Rua de Martim Farto – pelo que consta um indivíduo de fé e sobejamente endinheirado – e pelas demais ruelas estreitas e sinuosas. Entrar na Praça da República após atravessar a cerca intimista do Convento do Espírito Santo é uma visão agradabilíssima: largos passeios, agradáveis comércios. Só mais tarde percebemos que o nosso percurso pelo núcleo antigo acompanhara os passos de um outro andarilho, este bem mais recente(4). Vou citá-lo: “O viajante deixa-se levar pela intuição e mete-se pelo labirinto de ruelas […] até desembocar frente ao edifício do mercado, com as suas chamativas cúpulas vermelhas […] que sugerem uma decoração das Mil e Uma Noites.”
O Mercado impressiona de facto pela sua escala grandiosa e pelas suas cúpulas arabizantes, mas também pela sua estrutura interior em ferro, com uma floresta de colunatas elegantes que se unem, formando uma imensa abóbada sobre as bancadas dos comerciantes, num ambiente limpo, ordenado, bem iluminado. “Tem-se uma impressão de esforço doseado e de segurança que o andar pausado dos habitantes reforça.”(5)
Um pouco abaixo do edifício dos Paços do Concelho espera-nos um contratempo: o célebre Café Calcinha onde tantas tertúlias animaram as suas mesas, estava fechado! Uma senhora da loja ao lado, vendo o nosso ar desolado, informou-nos que andam em obras há uns tempos mas que tornará a abrir como café. Excelente notícia! embora nos conviesse mais que já estivesse aberto para, confortavelmente sentados, podermos falar de alguns dos filhos insignes desta terra.
De figuras eminentes, como por exemplo do Eng. Duarte Pacheco, homem da Segunda República, mas a quem Loulé ergueu um monumento junto à Rua 25 de Abril (o que demonstra bastante fair-play…). Também constariam do rol dois presidentes da República, um da Primeira, José Mendes Cabeçadas e outro da Terceira, Aníbal Cavaco Silva. Impossível esquecer a romancista Lídia Jorge, filha querida de Loulé e figura de referência nas Letras portuguesas e, last but not the least, António Aleixo, o bardo a quem chamam popular, nascido vila-realense mas falecido em Loulé e a quem mandaram fazer uma soturna estátua no exterior do Café Calcinha, eternizando-o muito sério, de perna traçada e sentado a uma mesinha, com uns poeminhas do próprio gravados no tampo, para que conste.
Decepcionado com a impossibilidade de saborear um merecido refresco no Café Calcinha, câmara fotográfica pendente do braço, o Mestre Homem Cardoso dirige-se inopinadamente à brônzea personagem: “Desculpe incomodá-lo, mas o senhor não é por acaso o poeta António Aleixo?
“Poeta, não, camarada. Eu sou também cauteleiro. Ser poeta não dá nada, vender jogo dá dinheiro”, responde o vate. E com esta nos fomos de Loulé.
(1) Lembro o estimado leitor que eu e o António Homem Cardoso, uma dezena de crónicas lá para trás, combinámos correr o Algarve costa-a-costa utilizando exclusivamente o comboio.
(2) FONSECA, Manuel, Crónicas Algarvias, Editorial Caminho, 2ª ed., Lisboa,1986, p 149.
(3) FONSECA, op. cit. P 154
(4) MESA, Diego, Viagem ao Algarve, Baseado na Viagem a Portugal de José Saramago, 1ª ed., 2014, p 44
(5) FONSECA, op. cit. p 149.