Crónicas de um Livreiro, de Martin Latham, com tradução de Jorge Melícias, chegou às livrarias portuguesas com o selo das Edições 70. Foi considerado livro do ano em 2020 para o Spectator e para o Evening Standard.
Com uma belíssima e original capa, a preto e branco, onde figuram algumas grandes figuras literárias, este livro reúne um conjunto de ensaios dedicados ao mundo dos livros assinados pelo mais antigo livreiro da Waterstones, a principal cadeia de livrarias inglesa.
Uma das crónicas começa mais ou menos assim: «Há um livro que, em 800 anos, não se moveu um centímetro. Está no túmulo de Leonor da Aquitânia, na Abadia de Fontevraud, perto de Poitiers. Toda a sua vida turbulenta ficou para trás e agora jaz em profundo repouso, segurando uma Bíblia aberta. Descansa da mesma forma que todos nós na cama quando, depois de uma conversa ou de um chá, nos tornamos um só com um livro, perdidos num mundo privado. A história de amor que a humanidade tem com os livros seria, para um visitante de outra galáxia, uma das mais estranhas que contamos.»
Para os amantes de livros
Crónicas de um Livreiro reparte-se por 13 grandes capítulos que se subdividem em pequenas subsecções. Da actual “literatura” de conforto aos folhetins, que contribuíram para efectivamente aumentar a literacia e as horas de leitura entre as classes baixas, alimentando quer a transformação da sociedade quer o desenvolvimento do romance; da arte de bem recomendar uma leitura, aliciando sem impor; dos vendedores ambulantes aos mercados de livros ao ar livre, um pouco por todo o mundo – designadamente, nas margens do Sena; do (afinal!?) mito da biblioteca de Alexandria às bibliotecas em banhos públicos; da figura erótica (ou sádico-masoquista) da bibliotecária à Classificação Decimal de Dewey, director das bibliotecas do estado de Nova Iorque de 1888 a 1906, uma figura tão metódica em termos de organização quanto duvidosa em termos pessoais; de uma biblioteca arquitectada por Miguel Ângelo com uma escadaria vista num sonho (que terá sido um pesadelo para construir), às bibliotecas no Japão, concebidas pelo multipremiado Toyo Ito, passando pelos morcegos mantidos na Biblioteca de Mafra – como um sistema eficiente e ecológico de controlo de pragas de livros –, estas várias crónicas dispersam-nos no tempo e no espaço, sob prismas e cambiantes diversos, em torno de um tema comum: os livros e a leitura.
Trata-se de um daqueles preciosos livros que entra no género de livros dedicados aos amantes de livros. Não é por acaso que o autor começa justamente o livro a dissertar sobre os amantes de livros, considerando como a bibliofilia toma mesmo, nalguns casos, nomeadamente entre as mulheres, contornos de sensualidade. Livreiro há trinta e cinco anos, Martin Latham fala com conhecimento de causa dos clientes que tocam, acariciam, cheiram os livros e, especialmente as mulheres, muitas vezes os chegam mesmo a beijar – quem nunca beijou um livro de que gostou particularmente no momento de o fechar ao terminar a leitura que se acuse. Crónicas de um Livreiro, ainda que o título parece remeter para uma memória pessoal, é, afinal, uma memória colectiva da leitura. Mesmo para quem leu Uma História da Leitura, de Alberto Manguel, recentemente reeditado pelas Edições Tinta-da-china, é garantido que fará novas descobertas nestas páginas onde o autor, num jeito erudito, a que não falta humor, revela um conhecimento prodigioso sobre a história do livro. Estas crónicas desenham assim o percurso da nossa relação amorosa com os livros; traçam o perfil da nossa possessividade face ao livro, como objecto a manter como algo pristino, sem dano ou mácula; ajudam a identificar se somos daqueles clientes que exigem um desconto perante a mais pequena marca nas páginas ou na capa, ou se pagam alegremente o mesmo valor de origem por um livro danificado (como tantas vezes hoje acontece nas livrarias); permitem compreender se somos leitores que preferem manter as margens das páginas intactas e imaculadas, ou se, por outro lado, somos escrevinhadores incansáveis amantes da marginália, que não dispensam um lápis na mão, ao ponto de, como Jacques Derrida, ter as suas próprias anotações impressas na edição do seu livro (as notas de rodapé não lhe seriam suficientes para o devido efeito); ou poderemos mesmo ser como James Frazer que, ao rever uma obra sua (um texto fundador da antropologia), inicialmente publicada em 2 volumes, mandou imprimir um exemplar único com páginas em branco intercaladas para acrescentos, o que acabou por resultar numa edição final de 12 volumes.
História da nossa obsessão por livros
Ao longo destas páginas de leitura permanentemente apaixonante, as pequenas crónicas do autor tocam-nos a todos. Quer sejamos amantes de bibliotecas, que, como afirma o autor, são um refúgio mítico para onde todos nós vamos em sonhos, quer sejamos inveterados colecionadores de livros, que gostam de os organizar em estantes e prateleiras, se bem que, raras vezes, por classificação ou assunto – como acontece nas bibliotecas –, mas quase sempre pela cor ou até pelo formato… Sabe-se pelo menos de um caso de quem tivesse serrado os livros para garantir que ficavam todos com a mesma altura. Mas para evitar este tipo de problemas de bricabraque livresco, a Edições 70 acaba de publicar uma novidade justamente sobre Como organizar uma Biblioteca, de Roberto Calasso.
“Seja o que for que a biblioteca signifique para nós, ansiamos por ela imaginativamente. Sabemos que somos mais do que um, a pessoa que aqui e agora usa um nome que lhe foi dado. Somos produtos de grandes migrações, falamos o poliglotismo dos invasores. Não é de admirar que desejemos tanto ler histórias, e que, periodicamente, precisemos de vaguear” (p. 101).
Quer optemos por nos enroscarmos num recanto de leitura onde ninguém nos encontre, em vãos de janelas ou patamares de escadas, quer escolhamos nos enroscarmos na cama sob os lençóis com uma lanterna e ler pela noite dentro, esta é a curiosa história da sua/nossa obsessão pelos livros.
Crónicas de um Livreiro é um livro fácil de ler, embora mais difícil de classificar. Um misto de ensaio, livro de memórias, história cultural? Um livro que interliga de curiosidades, anedotas do ofício e factos?
O que resulta claro é que o autor nunca pretende ser fastidioso – e o seu humor, em diversos momentos, diverte mesmo. Estes textos, afinal, constituem também, uma declaração de amor ao seu ofício, e, muito pontualmente, em certas passagens mais renitentes, podemos sim encontrar fragmentos das memórias do livreiro:
“Juntei-me à Waterstones Booksellers em 1988 e fui enviado por Tim Waterstone para trabalhar na livraria de High Street Kensington, a curta distância do Palácio de Kensington. Era uma bonita livraria de três andares localizada numa esquina onde nos podíamos cruzar com David Hockney ou Van Morrison, Mick Jagger ou Madonna” (p. 167)
Martin Latham, doutorado em História da Índia no King’s College, ensinou na Universidade de Hertfordshire antes de se voltar para a venda de livros. Foi livreiro durante mais de três décadas. Orgulha-se de ser o responsável pela maior reivindicação de fundos de maneio da história de Waterstones, quando pagou pela escavação do chão de uma casa de banho romana debaixo da sua livraria.