O conflito em torno dos pensionistas italianos que realizaram pequenos trabalhos ocasionais ganha relevo internacional ao mostrar como uma interpretação administrativa pode alterar profundamente a vida de quem depende da reforma. Esta temática, centrada no impacto das regras da reforma antecipada “quota 100”, tornou-se um dos debates mais sensíveis em Itália e levanta questões que ultrapassam fronteiras, como é o caso deste padeiro reformado.
A história de Angelo Menapace, um padeiro reformado de Tuenno, tornou-se o rosto desta polémica. Depois de ajudar o primo durante um mês numa peixaria e receber 280 euros por 30 horas de trabalho pontual, o Instituto Nacional da Previdência Social de Itália (INPS) exigiu-lhe 19 mil euros, alegando que o simples ato de trabalhar violava as regras da “quota 100”.
Menapace contestou de imediato a decisão no Tribunal Laboral de Trento. Enquanto aguarda uma resolução, dirigiu-se ao Presidente da República italiana, mas o Palazzo del Quirinale esclareceu que o chefe de Estado não pode intervir em decisões de entidades como o INPS, de acordo com o jornal digital espanhol HuffPost. A resposta, assinada por Andrea Fusco, confirmou os limites institucionais deste tipo de apelos.
Interpretação rígida da “quota 100”
No centro do conflito está uma circular interna do INPS. Segundo o advogado Giovanni Guarini, esse documento determina que qualquer reformado abrangido pela “quota 100” que realize trabalho remunerado, mesmo ocasional, perde automaticamente toda a pensão recebida nesse ano. De acordo com o jurista, a leitura não tem respaldo direto na legislação, sendo uma interpretação administrativa excessivamente severa.
Intervenção dos tribunais
Nos últimos dias surgiu alguma esperança com uma decisão do Tribunal Constitucional, ativada por uma questão colocada pelo Tribunal Laboral de Ravena. Este tribunal considerava inconstitucional a interpretação do Tribunal de Cassação por, na prática, retirar aos pensionistas os meios essenciais de subsistência, contrariando o artigo 38 da Constituição.
O Tribunal Constitucional declarou a questão inadmissível, mas deixou um ponto essencial: a decisão do Supremo não impede que os juízes escolham interpretações alternativas mais compatíveis com a Constituição. E realçou que vários tribunais, incluindo o Tribunal de Apelação de Trento e um tribunal de Rovereto em fevereiro de 2025, continuaram a adotar critérios distintos, de acordo com a fonte anteriormente citada.
A margem de decisão dos tribunais inferiores
Para especialistas e advogados, citados pelo HuffPost, esta observação é particularmente relevante. Demonstra que a posição do Supremo não se tornou doutrina obrigatória e que os tribunais inferiores podem avaliar cada caso de forma autónoma, considerando os direitos fundamentais envolvidos.
Segundo o advogado Guarini, a decisão do Tribunal Constitucional não fecha o debate. Pelo contrário, devolve aos tribunais a liberdade de decidir caso a caso. Para pessoas como Menapace, afirma, o jogo “volta a jogar-se”, deixando espaço para soluções mais equilibradas e justas.
Enquadramento em Portugal
O caso deste padeiro reformado em Itália não tem paralelo direto em Portugal, já que o sistema português permite a acumulação da pensão com trabalho, incluindo trabalho dependente ou independente, sem perda automática da prestação. O regime é bastante mais flexível e parte do princípio de que o pensionista pode continuar ativo, desde que cumpra as obrigações contributivas.
Do ponto de vista jurídico, o enquadramento português assenta sobretudo em:
- Decreto-Lei n.º 187/2007, que clarifica regras de acumulação entre pensões e rendimentos de trabalho;
- Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, que determina que pensionistas de velhice podem continuar a exercer atividade profissional, devendo apenas descontar para a Segurança Social se exercerem trabalho dependente ou independente.
Assim, ao contrário do que acontece com a “quota 100” italiana, em Portugal um reformado pode exercer pequenos trabalhos ocasionais ou mesmo continuar a trabalhar regularmente sem perder a pensão, mantendo apenas a obrigatoriedade de contribuir quando a natureza do trabalho o exige.
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