A humanidade em busca da felicidade” é uma das primeiras frases que surge na abertura de uma das mais famosas películas cinematográficas, “Tempos Modernos”, e não é por acaso. O advento da revolução industrial representava uma melhoria significativa das condições de vida, mas também a chegada do mundo moderno, movido a vapor e repleto de oportunidades. De regresso ao presente, os anseios não são hoje muito diferentes. A indústria 4.0 já chegou, obrigando a transformações profundas na liderança e organização empresarial que permitam enfrentar os desafios que o futuro guarda. “Estamos a respirar os últimos momentos da primeira revolução industrial”, vaticina Sérgio Rebelo, que lembra como até então “o progresso tecnológico era muito, muito lento”.
A evolução é agora muito mais acelerada e baseada em inteligência artificial, machine learning, realidade aumentada e automação. Porém, como em qualquer momento de disrupção, existem obstáculos que importa enfrentar e superar para uma transição bem-sucedida. O economista e professor em Chicago, que participou na sessão solene das comemorações dos 150 anos do nascimento de Alfredo da Silva, na Fundação Calouste Gulbenkian, acredita que é essencial pensar em novas formas de criar procura no mercado de consumo, uma vez que uma parte da classe média poderá perder o seu posto de trabalho para as máquinas. “Esta revolução cria empregos para uma elite de pessoas que tem cursos de engenharia e que trabalha em biotecnologia, e, de certa forma, substitui muitos tipos de trabalho feitos por pessoas que têm rendimentos da classe média”, alerta.
Uma das formas que tem sido apontada para evitar a perda de emprego passa pela aprendizagem ao longo da vida, pela requalificação e aquisição de novas competências, que permitam ao trabalhador adaptar-se às novas exigências. “Temos de pensar como vamos criar um sistema de educação para o futuro”, diz Sérgio Rebelo, detalhando que “o que falta é a capacidade analítica de juntar informação e de extrair o sentido que esta tem”. Criatividade e aptidão para a resolução de problemas serão habilitações cada vez mais valorizadas, defendem os especialistas. A adaptação não é, ainda assim, apenas exigida aos trabalhadores. “As organizações vão ter de se preparar para lidar com novas gerações que têm expectativas diferentes das que as precederam”, garante o professor da Nova SBE Miguel Pina e Cunha. O modelo de gestão empresarial que hoje conhecemos não é muito diferente daquele que Alfredo da Silva implementou há um século, sobretudo assente na hierarquia e burocracia. “O supervisor do passado dá lugar ao coach, alguém que tem responsabilidade de ajudar a melhorar a equipa, torná-la capaz de ganhar e ajudar a desenvolver as pessoas”, afirma.
As novas empresas devem ser mais ágeis, sob pena de perderem o comboio da revolução e, consequentemente, a competitividade. A maior dificuldade que Pina e Cunha identifica é a capacidade de reinventar a organização e alterar a sua cultura, aliviando a hierarquia sem perder a coordenação. “Julgo que vem aí um admirável mundo novo cheio de oportunidades e cheio de ameaças”, antevê.
Nesta imagem, a mesma obra, já na nova unidade CUF Tejo, inaugurada em novembro – Foto Luis Pavao/Lupa D.R.
Mais competitividade
Apesar do entusiasmo generalizado e empenho europeu na reindustrialização do velho continente, com a Comissão Europeia a querer liderar este processo de transformação, o ex-ministro da Economia Daniel Bessa confessa-se “relativamente agnóstico” em relação ao conceito. “A minha guerra é a do valor, do emprego atrelado ao valor, rendimento atrelado ao valor e condições de vida arrastadas pelo valor”, declara. Em causa está, por um lado, o reduzido peso da indústria na economia nacional (ver texto de opinião de Daniel Bessa) e, por outro, a busca por novos fatores de competitividade. Se até aqui uma das mais-valias de Portugal era os baixos custos da mão de obra, com a adoção das tecnologias de ponta, em particular da automação, o valor do trabalho terá menos impacto nas contas das empresas industriais no futuro. “O tema do custo salarial deixa de ser vantagem da economia portuguesa porque a automação vai esbater a importância relativa desse custo”, afirma.
Além de garantir que são encontrados novos elementos competitivos, os industriais devem trabalhar de perto com o sistema científico e tecnológico para melhorar processos, aumentar a eficiência e encontrar pontos de diferenciação. Daniel Bessa refere ainda os custos de contexto, incontroláveis pelos gestores, que se verificam com “a multiplicação de impostos, das taxas, da burocracia, da incerteza e da discricionariedade”, assim como com os desafios levantados pela energia. “Ter como fator distintivo uma das energias mais caras do mundo não sei se é fatal, mas é uma desvantagem enorme”, atesta.
Próxima década na saúde
Mas os desafios que Portugal enfrenta nos não terminam na liderança e na indústria. A saúde, tal como percebeu Alfredo da Silva, é essencial para garantir o correto funcionamento da economia e, neste campo, a pandemia é o melhor exemplo disso mesmo. O economista Pedro Pita Barros (ver texto de opinião) explica que um dos maiores desafios que se colocam ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) é o peso dos pagamentos diretos no orçamento do sector. De acordo com o perito, os gastos em saúde pagos diretamente pelo utente — em consultas, exames ou medicamentos — representam cerca de um terço do montante anual disponibilizado ao SNS, algo que Pita Barros considera um risco para o acesso à prestação de cuidados. “Sabemos que se houver muito pagamento direto, há barreiras de acesso”, diz, referindo-se aos doentes que deixam de procurar ajuda médica por incapacidade financeira.
Ainda assim, o também professor na Nova SBE acredita que não está em causa, na próxima década, uma implosão do SNS, seja pela questão dos pagamentos diretos, seja por vontade política ou da sociedade. “Diria que os próximos dez anos serão, muito provavelmente, semelhantes ao que foram os últimos dez”, antecipa. Já a agilidade do sistema e dos seus profissionais é um ponto que considera importante resolver, de forma a preparar futuras emergências de saúde. “Se quisermos falar em resiliência, temos de falar sobre como por ambos [sectores público e privado] a mobilizar recursos quando houver uma situação de emergência”, remata.
A vontade de “dar saltos tecnológicos”
Inovador e resiliente, Alfredo da Silva fintou e superou desafios num período que encontra paralelo na atualidade
Marcelo Rebelo de Sousa e Vasco Mello nas comemorações – Foto José Fernandes D.R
Há muita coisa que separa Portugal do início do século XX e Portugal do século XXI, embora seja possível identificar semelhanças no contexto social, económico e político. “O paralelo de crises que existe na altura de Alfredo da Silva e as que estamos a viver neste tempo é incrível”, considera o professor Ricardo Reis. O docente da Universidade Católica Portuguesa aponta as dificuldades económicas do país, as mudanças de regime político, a I Guerra Mundial e a gripe espanhola como exemplos dos obstáculos enfrentados pelo industrial português. Entre as explicações para o seu sucesso está a formação académica que concluiu no Instituto Industrial e Comercial de Lisboa, onde foi doutrinado com as tendências económicas liberais que chegavam, a conta-gotas, a território nacional.
As ferramentas adquiridas por Alfredo da Silva na juventude viriam a revelar-se fundamentais para conseguir, com êxito, fundar e desenvolver um dos maiores grupos empresariais portugueses. O domínio de línguas e a curiosidade empurram-no para viagens de prospeção ao estrangeiro, de onde regressa com projetos inovadores, que contribuem, inequivocamente, para o progresso económico e para a profissionalização da gestão, que foi evoluindo ao longo das décadas. “Até ao final da segunda metade do século XIX, a transferência de conhecimento na formação de quadros baseava-se na aprendizagem através da prática”, explica Álvaro Ferreira da Silva. O professor da Nova SBE diz, porém, que este modelo “não se coadunava com a rapidez do crescimento das necessidades de recrutamento destas empresas mais complexas”. Esta foi uma das transformações progressivas no grupo, que nas décadas de 60 e 70 já adotava um modelo avançado de formação de quadros — uma combinação de conhecimento tácito, explícito e mentoria.
Contudo, a antecipação do futuro por Alfredo da Silva e pelos seus sucessores não se restringiu à gestão de topo. Com a iliteracia a atingir os 75%, esta seria “uma desvantagem muito grande para um país que procura avançar na industrialização”, sublinha o professor Manuel Braga da Cruz. Além de criação de uma escola industrial que preparasse os trabalhadores do grupo, o fundador construiu bairros operários, cantinas, uma caixa de providência e lançou até a ideia de um hospital especialmente pensado para servir os funcionários e as suas famílias. A primeira unidade CUF só viria a ser fundada após a sua morte, em 1945. “Compreendia que salários mais altos e condições de vida digna favoreciam a produtividade”, acrescenta Braga da Cruz. Aqui ficariam as sementes para o que mais tarde seria conhecido como responsabilidade social das empresas.
A vontade de “dar saltos tecnológicos”, aliada a uma visão estratégica “invulgar” e a uma “enorme ambição”, permitiu ao empreendedor “criar um modelo de organização empresarial que ainda hoje tem atualidade no nosso país”, descreve o bisneto e atual presidente da Fundação Amélia de Mello, Vasco de Mello. Marcelo Rebelo de Sousa destaca a preocupação do industrial em “estar sempre na crista da onda” da inovação e classifica-o como “um homem cheio de iniciativa em favor da economia nacional”. A industrialização do país era, então como agora, essencial para o futuro.
3 visões para o futuro segundo os especialistas
Um dos desafios para a próxima década do sistema de saúde português é o elevado valor dos pagamentos diretos (o que as famílias pagam no momento de uso, seja comparticipação de medicamentos, consultas, exames, dentistas, etc.) e saber que proteção contra essas despesas será construída: redefinição das coberturas financeiras do Serviço Nacional de Saúde, expansão dos seguros de saúde (que ainda não avançaram nesta direção de forma substancial), ou outra alternativa. O outro desafio da década liga-se à palavra da moda — resiliência. Construir a resiliência do sistema de saúde implica antecipar, absorver, adaptar e aprender com choques. Conseguir esses 4-A, sabendo-se que a resiliência resulta da rapidez de decisão informada e não da mera acumulação de recursos ou equipamentos, vai exigir criação de consensos sobre os mecanismos adequados.
Pedro Pita Barros
Economista e professor na NOVA SBE
Comemoração constitui um motivo não apenas para celebrar este empresário como também para refletir sobre o papel da gestão na sociedade. Num país tão desconfiado das empresas e da iniciativa privada e tão martirizado por maus exemplos recentes, o caso de Alfredo da Silva obriga-nos a olhar para os empresários e as empresas como forças de progresso. As boas empresas criam produtos e serviços, geram empregos, desenvolvem inovação, capacitam as pessoas. Sem elas, falta às sociedades a dinâmica competitiva, a criação de riqueza que depois se distribui na forma de impostos e a capacidade de inovação que distingue as economias dignas de admiração. As boas empresas, em conjunto com um Estado forte e empreendedor e com uma sociedade civil ativa, constituem um triângulo virtuoso. Sem elas a sociedade estiola. Celebrar os 150 anos de Alfredo da Silva é também reconhecer o papel das empresas e dos empresários na criação do país que desejamos ser. Uma mensagem tão urgente hoje como há século e meio.
Miguel Pina e Cunha
Professor titular da cátedra Fundação Amélia de Mello, Nova SBE
Como em quase todos os países do mundo, a indústria tem perdido peso na economia portuguesa: de 17,2% do VAB, em 2000, para 14,2% do VAB, em 2018. Empenhados em criar valor, e emprego, e rendimento, é normal que se procure inverter esta tendência. Reindustrializar tornou-se uma palavra de ordem em que me revejo. Convém, no entanto, antes de prosseguirmos, atender a que há indústria e indústria.
A indústria que, em 2018, criou 14,2% do VAB ocupou 16,3% dos trabalhadores e pagou 15% da massa salarial do total de setor privado da economia portuguesa. Teve, por isso, uma produtividade de 87% da média nacional e pagou um salário médio que não excede os 92% da média nacional. Reindustrializar? Sim, com uma indústria mais intensiva em tecnologia e em conhecimento, empregando trabalho mais qualificado, criando mais valor e pagando melhores salários. Caso contrário, não vale a pena.
Daniel Bessa
Economista e ex-ministro da Economia
Textos originalmente publicados no Expresso de 9 de julho de 2021
Notícia exclusiva do nosso parceiro Expresso