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Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora;
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Recentemente, realizou-se a 25ª edição do festival Super Bock Super Rock, no Parque das Nações, em Lisboa. Desta vez, foi convidado o artista Bordalo II para construir uma obra para o recinto, tendo criado uma guitarra de grandes dimensões, a “Guitrash”, feita com resíduos urbanos. O administrador de Marketing da Unicer justificou esta opção pela preocupação da marca com a reutilização do desperdício.
Bordalo II (Artur Bordalo assina assim pois é neto do pintor Bordalo), é um dos principais nomes portugueses em arte urbana, utilizando “lixo” para construir obras/instalações/composições de grande dimensão com uma consciência ambiental. Nascido em Lisboa, em 1987, frequentou o curso de pintura, que não terminou, na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. As suas obras pretendem chamar a atenção para as problemáticas do consumismo exagerado e dos desperdícios derivados do mesmo. São a tradução plástica da frase o lixo de um Homem é o tesouro de outro. Ou, conforme refere o próprio: “todo o lixo que eu utilizo é por causa do nosso dia a dia e da forma como nós não sabemos gerir os recursos, o próprio planeta, de forma sustentável (…) A ideia que eu tenho é de criar imagens das vítimas da poluição e da ação do homem exatamente com aquilo que os destrói, com aquilo que os mata. O mundo está a ser destruído e eu estou a criar imagens com aquilo que o destrói, com aquilo que destrói a natureza, que a vai degradando.” As obras que produz, criando imagens a partir do aproveitamento daquilo que os outros desperdiçam, são a prova que na arte, tal como na natureza, nada se perde, tudo se transforma, aproximando-se do princípio de Lavoiser.
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À distância vemos imagens, sobretudo de cenas urbanas ou animais, mas aproximando-nos surgem torneiras, bocados de uma mangueira, um telemóvel, uma calculadora, pedaços de casacos peludos, pneus, plástico, entre outros elementos provenientes de fábricas abandonadas, peças em vários tipos de plástico e lixo electrónico. Todo o material que compõe as peças maiores é aparafusado ou soldado, e assenta num suporte, embora nas peças mais pequenas seja utilizada cola, numa técnica mista.
Antes desta criação da “Guitrash”, Bordalo II já havia tido várias intervenções em arte urbana com aproveitamento de “lixo”, sendo a sua obra “Owl Eyes” (“Olhos de Mocho”), na Covilhã, destacada pela Street Art News na lista das 25 obras de arte urbana mais populares do mundo, em 2014.
Mas são muitos os artistas que, na atualidade, utilizam “lixo” na produção das suas obras. Os artistas conseguem dar valor aos materiais descartáveis, utilizando desde os objetos mais simples até às esculturas mais incríveis.
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Por exemplo, Erika Iris Simmons reaproveita as fitas de antigas cassetes para criar quadros de ícones da música, como John Lennon e Marilyn Monroe. Além de aproveitar o material, a ideia da norte-americana é utilizá-las como símbolo do obsoleto para construir a metáfora de como as fitas ajudaram a imortalizar o espírito dos cantores retratados.
Por seu turno, Jaime Prades é um artista brasileiro que encontra nas ruas uma de suas matérias-primas: a madeira. Ele recolhe os restos de madeira, que podem ser de móveis velhos, para construir novas peças, em particular árvores. Isso gera o ciclo da árvore que se transforma em objeto de mobiliário, sendo posteriormente descartado no lixo, mas podendo ser depois reaproveitado na forma de árvore. Prades intitula este trabalho como “Natureza Humana”, ilustrando o poder da intervenção do homem sobre a natureza, sendo importante que essa intervenção seja no sentido construtivo.
Numa outra abordagem das questões ambientais, da destruição e do lixo na arte, recentemente foi realizada uma exposição na Sala Oval do MAAT (Museu Arte Arquitetura Tecnologia), em Lisboa, intitulada “Ordem e Progresso”, da autoria do artista mexicano Héctor Zamora. Colocou nesta sala sete embarcações que haviam sido dadas para abate em portos portugueses e contratou trinta trabalhadores temporários para as destruírem com marretas, martelos e pés de cabra na inauguração, marcada para as 18 horas do dia 22 de março deste ano, tendo podido o público assistir a esta performance-instalação. Esta exposição retoma as duas anteriores realizadas em 2012, no Paseo de los Héroes Navales, em Lima, Peru, e, em 2016 no Palais de Tokyo, em Paris. Na versão apresentada em Portugal, destroços de barcos de pesca tradicionais portugueses, de diferentes regiões costeiras, ocupam temporariamente a Galeria Oval do MAAT, pretendendo evocar a tradição marítima profundamente enraizada na identidade portuguesa, mas também a dimensão sociopolítica do problema do abate dos barcos, dadas as restrições para a pesca artesanal impostas pela União Europeia. O problema das perigosas travessias no Mediterrâneo, com a morte de milhares de refugiados, é outra questão sociopolítica que esta exposição procura abordar.
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Descobrir o belo onde a maioria só vê lixo e, melhor, transformar esses desperdiçios em arte, foi o que esteve na origem do documentário “Lixo Extraordinário”, que mostra um projeto do artista plástico brasileiro Vik Muniz, indicado para o Oscar de Melhor Documentário, em 2011.
Assim, a utilização do “lixo” é cada vez maior na produção de obras em artes visuais. No entanto, desde o início do século XX que a produção de obras em colagem ou técnica mista faz uso de objetos do quotidiano. Veja-se, por exemplo, a obra “Natureza Morta com Cadeira de Palhinha”, de Picasso, em 1912.
Em todo o caso, sendo a produção artística expressão da época em que ocorre, é na atualidade que o “lixo” é cada vez mais utilizado, numa perspetiva de chamar a atenção para as questões ambientais. Esperemos que a arte possa ajudar a que as pessoas tomem consciência da importância do seu comportamento para a preservação do ambiente, em particular para a necessidade de não desperdiçarmos e para a separação do lixo, permitindo a reciclagem e a reutilização dos materiais.
A utilização do lixo nas artes visuais está muito ligada à arte urbana. De uma forma geral, esta forma de arte nasceu de uma atitude de transgressão e ilegalidade, sendo os primeiros grafites e instalações feitos clandestinamente. No entanto, esta expressão artística tem suscitado o interesse de entidades públicas e privadas, sendo atualmente a maioria das obras realizadas por convite, nomeadamente por parte de câmaras municipais ou associações culturais, no sentido dos artistas poderem intervir em espaços públicos e em prédios devolutos, dando-lhes uma nova imagem, tornando aquilo que era quase “lixo” em obras artísticas de grande dimensão e, do ponto de vista urbanístico e turístico, tornar aquilo que eram zonas feias das cidades a evitar visitar, em zonas procuradas como pontos de referência dos roteiros turísticos das cidades.
No próximo número iremos dedicar-nos a abordar aspetos ligados à durabilidade e ao impacto social da arte urbana.
(Artigo publicado no Caderno de Artes Cultura.Sul)