
Investigadora na área da Sociologia
[email protected]
O património cultural do meio rural tem dimensões materiais e imateriais que coexistem e são observadas e analisadas de forma indissociável.
Esta relação entre património tangível e património intangível e o seu papel na construção social da herança cultural e da memória colectiva não pode ser esquecida. As pesquisas realizadas no interior algarvio têm permitido encontrar locais ricos em património imaterial, como lendas, tradições, mezinhas, orações e saberes ancestrais que estão em risco de se perder. São muitos os lugares em acelerado processo de desertificação, tendo alguns apenas dois ou três habitantes e de idade avançada. Trata-se de locais onde ainda encontramos a paisagem preservada, a autenticidade das gentes, as vivências comunitárias, tais como a partilha do forno, da eira, do burro, de utensílios e de alfaias agrícolas.
São espaços que podem permitir a experiência turística sustentável, valorizando as populações idosas e os seus saberes, reavivando imaginários que conseguem ir ao encontro de uma imagem idílica do rural. Pela observação no terreno, poderei afirmar existirem, ainda, no Algarve interior, vivências relativamente preservadas e que fazem sentir que parte da tradição ainda se mantém, com um importante cruzamento entre materialidade e imaterialidade. Este cruzamento permite variadíssimas abordagens multidisciplinares.
Atravessando o Algarve interior de Aljezur a Alcoutim, é possível encontrar alguns exemplos de ligação entre património material e património imaterial, quase sempre em pequenos povoados ou montes. Os montes no Algarve são formados por um conjunto de casas, normalmente de diferentes proprietários, como se fosse uma ‘mini-aldeia’, ao contrário dos montes no Alentejo que são formados normalmente por uma só casa, por vezes com anexos, e relativamente isolada.
Exemplo concreto da ligação entre património material e imaterial

Nas duas imagens apresentadas podemos observar um forno comunitário no centro de um monte do Nordeste algarvio. O forno, para além da sua função de cozer pão, tem uma função de culto religioso, por ter na parede do próprio forno um nicho ou oratório de devoção mariana.
Este nicho ou oratório tem pequenas particularidades que valorizam o património material e imaterial: a imagem da Virgem Maria está decorada com uma cercadura de pedrinhas recolhidas nas ribeiras; há um pano de linho que cobre a imagem e que é decorado com um pequeno bordado que representa o saber-fazer e as artes desta zona do Algarve.
Há ainda um painel de seis azulejos com doze versos referentes à Virgem Maria e à fé desta gente. Tem ainda em destaque o ano em que foi adaptada a parte religiosa a uma das paredes laterais do forno. Os habitantes referem conhecer desde sempre este forno, no meio do monte, para uso de todos.
Os doze versos dedicados a Nossa Senhora da Conceição fazem referência à devoção dos habitantes do monte e à sua localização, tal como a elementos naturais da zona como as ribeiras, a esteva e o alecrim:
A devoção é tanta
Que te damos um altar
Para nos abençoares
Nas horas de azar
Ficas aqui neste Monte
Da Freguesia de Alcoutim
Ficas entre duas ribeiras
Onde só há estevas e alecrim
Falei das caracteristicas deste forno ao Prof. Doutor Moisés Espírito Santo, que foi meu professor de Sociologia das Religiões na Universidade Nova de Lisboa, e referiu que não conhece mais nenhum caso deste género no país.
Do mundo local aos desafios do mundo global

O sociólogo Anthony Giddens refere que a tradição persiste com algumas reinvenções a cada geração, mas sem haver um corte profundo, ou descontinuidade absoluta entre o ontem, hoje e o amanhã.
O referido sociólogo acrescenta ainda a ideia de que a tradição envolve o ritual e este constitui um meio prático de preservação. Nas sociedades ou comunidades que integram a tradição, os rituais são mecanismos de preservação da memória colectiva.
O património material e imaterial mantém-se no meio rural porque existe identidade e grande proximidade entre os elementos da comunidade, quase sempre com um grau de parentesco entre eles. Esses laços reforçam o sentido de responsabilidade na preservação daquilo que lhes foi deixado pelos antepassados.
É um legado que pesa na construção social da herança cultural e da memória colectiva e essa redescoberta da memória, da tradição e da identidade, tem uma autenticidade que facilita a criação de atractivos turísticos. Permitir a experiência turística, desde que de forma sustentável, valorizando a paisagem, as populações idosas e os seus saberes, reavivando imaginários, pode ser uma mais-valia para todas as partes: quem é visitado e quem visita.
Segundo a Convenção Europeia da Paisagem, assinada por Portugal e pelos restantes membros do Conselho da Europa, em Outubro de 2000, a paisagem desempenha importantes funções de interesse público no âmbito cultural, ecológico, ambiental e social, e constitui claramente um recurso favorável à actividade económica. Ainda segundo a mesma Convenção, o património do mundo rural deve ser entendido e utilizado, tendo em conta todas as suas componentes (paisagem, edifícios, técnicas, instrumentos, saberes-fazer e o próprio homem rural) como um factor de desenvolvimento.
De facto, todos estes elementos são um património vivo. Os diferentes actores do mundo rural, interligando-se com esses elementos, conferem-lhe um sentido e um valor para a colectividade e para o território.
Existe uma ideia, quase generalizada, de que com o mundo globalizado, as tradições vão ficando esquecidas. No entanto, alguns autores são unânimes em afirmar que a era da globalização permitiu uma valorização do que é local e específico, na medida em que perante um mundo cada vez mais homogeneizado, aquilo que marque pela diferença e contenha ingredientes de genuinidade é procurado e valorizado. Aliás, as ferramentas que foram desenvolvidas no âmbito das novas tecnologias da informação, permitem que em minutos possamos visualizar através da Internet imagens, filmes ou documentários sobre as tradições de localidades remotas.
Enquanto por um lado se resiste ao processo de globalização, por outro lado usam-se as ferramentas produzidas por esse processo para divulgar e manter a memória e as tradições.
Reinventar o património
O património ao longo do tempo vai sendo reinventado e vão-lhe sendo acrescentadas novas funções, que por vezes atraem pessoas de fora da comunidade. Estes novos utilizadores, muito provavelmente, procuram fruir o espaço através da vivência de novas experiências, tais como: amassar o pão, colocá-lo no forno, aprender as breves orações para bênção do pão, em que se faz o sinal da cruz dizendo: “Deus te acrescente e que seja para muita gente!” e, naturalmente, no final, degustá-lo juntamente com os produtos da região, como os enchidos, o presunto, o queijo, o mel e as azeitonas. Enfim, será a fruição desses saberes e sabores, enquanto parte do património imaterial, que enriquecem a vivência no mundo rural.
Daí a referência a uma possível experiência turística sustentável, em que exista uma redescoberta e interpretação do território rural, com alternativas para o desenvolvimento dos territórios rurais. Em que os recursos sejam valorizados e que possam permitir que a pouca população existente se mantenha nos locais de origem e obtenha alguma rentabilidade na manutenção das suas tradições, e que também lhe permita manter um equilíbrio na sua relação com o passado, o presente e o futuro.