
Consultora Filosófica
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Já alguma vez se viu naquela situação em que alguém conta algo e dá consigo a pensar “gosto muito mas não é para mim, não sou capaz!” Ou então: “Se pudesse até fazia, mas não tenho tempo!” O seu interlocutor falava de uma actividade desportiva, ou de uma certa forma de se alimentar ou de uma prática de meditação, ou de outra coisa qualquer. Algo que definitivamente lhe faria bem, disso não lhe restam dúvidas. Mas é então que a falta de auto-estima fala mais alto: “Fulano consegue porque é mais inteligente do que eu…”. A frase tem infinitas variantes: fulano é mais organizado, ou mais flexível, mais talentoso ou mais qualquer outra coisa, não importa o quê, fulano simplesmente é mais! Com estas justificações, o leitor apazigua momentaneamente o seu estado de espírito que começava a inquietar-se, vira costas ao assunto, e não pensa mais nisso! Que alívio! Encontrou uma justificação perfeita para não ter de fazer nada!
Sabia que na sua obra Bodhicaryavatara Shantideva, o grande sábio indiano classifica a falta de auto-confiança como preguiça? Esta obra está traduzida para Português com o título A Via do Bodhisattva, com um prefácio do XIV Dalai Lama. Sua Santidade afirma: “Se tenho alguma compreensão da compaixão e da via do Bodhisattva, é inteiramente com base neste texto que a possuo.” Trata-se de um longo poema que descreve o processo de iluminação desde o princípio até ao completo estado búdico, ao longo de 10 capítulos em verso. O texto é amplamente estudado na escola Mahayana – O Grande Veículo – do Budismo Tibetano.

Voltando à preguiça, o leitor é capaz de estar neste momento a interrogar-se porque é que no entender do sábio Shantideva duvidar de si próprio ou ter uma auto-estima baixa são sintomas de displicência. No capítulo IV, que versa sobre a Atenção, Shantideva está bem ciente desta armadilha mental: “Mas, oh, a minha mente é fraca. Sou indolente!” De acordo com a filosofia budista todos os seres sensíveis possuem natureza búdica, portanto, todos podem alcançar a iluminação completa. A preciosa vida humana não pode ser desperdiçada com complacências! Há que meter mãos à obra e desvelar essa natureza búdica que todos possuímos, com coragem para superar as adversidades. No capítulo VII, sobre a Diligência, Shantideva incita-nos: “Não te deprimas, mas dispõe em ordem todos os teus poderes;/ faz um esforço; sê o mestre de ti mesmo!” A iluminação é para todos, não apenas para uma elite… Mas claro que é necessário trabalhar para a conseguir! Esta é uma das tais coisas que ninguém pode fazer por nós. Ao contrário de uma gripe que se apanha facilmente por contágio, bastando-nos estar ao pé de alguém infectado, as qualidades da mente e do espírito não se desenvolvem senão por mérito próprio. Amigos virtuosos podem ajudar mas não bastam. Em primeiro lugar é necessário aplicar todos os esforços para eliminar a vagabundagem mental. Só assim se podem pôr em ordem todos os nossos talentos e potencialidades. Lembre-se: ter um enorme potencial e recusar-se a actualizá-lo é PREGUIÇA!
Outro obstáculo consiste na pretensa falta de tempo. Vive-se a correr e Cronos é devorador. Realmente, não há tempo para tudo. Que fazer então? Há que hierarquizar prioridades. Isto faz parte do processo de se tornar mestre de si mesmo, de não se deixar levar pela maré, ou pelo que os outros pensam ou dizem, ou pelo facilitismo reinante. Agarrar as rédeas da própria vida é um acto de coragem. Os Tibetanos têm o seguinte ditado: “Não te deixes levar pelo nariz!”. Fazendo referência à anilha que o boi têm no nariz e que serve para que o dono o conduza com uma corda. Quantas vezes nos desculpamos com os outros para não fazermos aquilo que verdadeiramente nos importa. Cedemos amiúde a chantagens emocionais. Achamos que estamos a ser altruístas e talvez estejamos a ser palermas. Aqui está algo que urge averiguar. Até porque se corre o risco de além de néscio se ser perdulário, ao esbanjar a preciosa vida humana, tão frágil e escassa.
Ainda segundo Shantideva, se se está verdadeiramente interessado em progredir espiritualmente, é necessário consolidar a concentração e tal não se consegue sem uma severa redução do nosso envolvimento em assuntos mundanos. Claro que é preciso criar condições suficientes para suprir as nossas necessidades de sobrevivência. Porém, não é possível perseguir objectivos mundanos e ao mesmo tempo progredir espiritualmente. Simplesmente não há tempo! Há que treinar a renuncia. É uma questão de saber o que (não) se quer.