A julgar pelas filas de metros e metros que se verificaram esta manhã à porta de pubs, lojas de roupa, cabeleireiros e outros estabelecimentos considerados não-essenciais ao longo de quase quatro meses de duro confinamento no Reino Unido, poder-se-ia acreditar que os britânicos leram e levaram muito a sério a notícia que, sexta-feira passada, dava conta de que a imunidade de grupo já chegara ao país. Vários cientistas já vieram, entretanto, pedir cuidado com o exagero da confiança e do otimismo, isto mesmo quando a campanha de vacinação no Reino Unido corre quase sem falhas. A primeira dose já chegou a 32 milhões de pessoas, cerca de metade de toda a população. Cinco milhões já receberam duas doses da vacina.
A equipa da epidemiologistas do University College publicou um modelo matemático que mostra que a 9 de abril, 73,4% da população do Reino Unido estaria imunizada contra a covid-19, quer através da vacina quer por contágio, que pode criar imunidade natural durante um período que os cientistas ainda não sabem quantificar de forma exata. Pode depender, por exemplo, da carga viral recebida.
Casos de estudo como o de Manaus, no Brasil, são um banho gelado sobre a esperança que muitos cientistas têm depositado neste segundo tipo de imunidade — a tal que deveríamos receber por já termos estado doentes com covid-19 —, sobretudo em países mais pobres, que podem não conseguir vacinar rapidamente a população.
No verão passado, análises ao sangue de pessoas que já tinham estado infetadas com o SARS-CoV-2 mostraram que 66% tinham anticorpos. Em outubro esse número tinha saltado para auspiciosos 76%, o que levou cientistas a defender que a imunidade de grupo tinha sido alcançada em Manaus.
Quando o inverno chegou ao Brasil, verão deste lado, Manaus voltou às notícias, não por estar a passar ao lado da segunda vaga, mas por ter sido dos locais mais gravemente atingidos no país. Entre 25% e 61% das pessoas que tiveram covid-19 na segunda vaga já tinham estado infetadas. A imunidade adquirida pela doença não impediu o colapso do sistema de saúde, onde até oxigénio faltou.
“Precisamos de definir imunidade de grupo com mais cuidado, à medida que pensamos no futuro”, disse, citada pelo jornal britânico “The Guardian”, a professora Christl Donnelly, da Universidade de Oxford, que escreveu em parceria com o Imperial College de Londres o último estudo encomendado pelo Governo britânico sobre a incidência da infeção no Reino Unido.
“As vacinas são extremamente eficazes, mas não podemos saber que variantes vão surgir. O que sabemos é que limitar as transmissões, através de vacinas, mas também através de distanciamento social, reduz a probabilidade de que venham a surgir”, acrescentou a cientista.
Anne Cori, parte da equipa de investigação da Imperial College também veio juntar a sua voz às críticas: “Há muita incerteza sobre a duração da imunidade, tanto a imunidade da vacina quanto a imunidade natural. Se a imunidade for diminuindo com o tempo, podemos perder a imunidade de grupo depois de a termos alcançado”, disse Cori, citada pela “Bloomberg”.
Mesmo que o vírus não esteja a ser transmitido a uma velocidade descontrolada no Reino Unido, isso está a acontecer, por exemplo, no Brasil ou na Índia, o que significa que a probabilidade de mutação nesses ambientes é muito grande. Ora, essas mutações podem viajar até países onde supostamente já haja imunidade para um tipo de vírus, mas ela pode não aplicar-se a outra variante se esta for suficientemente diferente.
“As variantes que sejam suficientemente diferentes para contornar as vacinas que temos são uma enorme preocupação, porque obviamente isso significaria que teríamos de desenvolver novas vacinas e depois testá-las, e depois aprová-las, e depois distribuí-las”, disse, citado também por “The Guardian”, Adam Kucharski, da Universidade de Higiene e Medicina Tropical de Londres.
É um de vários especialistas pouco confiantes no modelo matemático da University College, que já antes errara ao prever o “pior cenário possível”, em setembro, quando colocou o número máximo de mortes no pico de novembro “entre 50 e 60”, quando centenas de pessoas morreram por dia no Reino Unido no inverno passado.
“É claro que esses números não tiveram em consideração a variante de Kent”, disse o professor. A variante de Kent é conhecida no resto do mundo como “variante britânica” e já representa a maioria das infeções em vários países europeus, como Portugal. Foi devido à enorme concentração de casos do “primeiro tipo” de covid-19 nesta zona do sul de Inglaterra que o vírus sofreu mutações lá, uma vez que a sua reprodução se tornou extremamente acelerada.
O matemático escocês Adam Kleczkowski, especializado em estudos na área da saúde, divulgou esta segunda-feira, no seu blogue sobre estatísticas e probabilidades, uma análise do modelo apresentado pelo University College. Também ele alerta que as variáveis usadas no estudo são mesmo muito variáveis, pelo que os modelos matemáticos também.
“Com a vacinação implacável que estamos a ter, não ficaria surpreso se pudéssemos atingir em breve atingir 75% de pessoas que já tiveram covid-19 ou levaram pelo menos uma dose da vacina, mas isso não significa imunidade certa para esses 75% das pessoas. A vacina não é perfeita (e a eficácia de 85,2% assumida pela UCL pode ser uma superestimativa), a presença de anticorpos não significa que a pessoa está completamente segura e ainda não sabemos o quanto a vacinação interrompe a transmissão. Se não interromper quase totalmente, o nível de imunidade de grupo necessário será superior aos 75% citados acima”, escreveu o professor.
Notícia exclusiva do nosso parceiro Expresso