Nos 50 anos do 25 de Abril, o Postal do Algarve publica o segundo de três cadernos especiais, da autoria do professor de História Idalécio Soares, sob o título genérico de O ALGARVE E O 25 DE ABRIL.
Idalécio Soares, investigador de História Local e Regional, é também autor dos livros Vítimas da Ditadura no Algarve, Três casos, três histórias subtraídas ao esquecimento (2017, Sul, Sol e Sal) e Por Dentro da Crise Olhão e o Algarve no final da Primeira República (2021, Sul, Sol e Sal).
2 – O MOVIMENTO MILITAR
Quem o fez era soldado
Homem novo capitão
Mas também tinha a seu lado
Muitos homens na prisão.
José Carlos Ary dos Santos,
As Portas que Abril abriu
AS RAÍZES DA CONTESTAÇÃO
No extremo sul do país, longe de Lisboa, para onde, na madrugada de 25 de Abril, confluíram grande parte das unidades militares das regiões envolventes, o Algarve teve um papel muito secundário nas operações que conduziram à deposição do regime ditatorial. Apesar de ali estarem sediadas três unidades (além do Comando Territorial do Algarve, hierarquicamente dependente da Região Militar de Évora e a quem estas obedeciam), apenas dois oficiais, os capitães José Castelo Glória Alves e Filipe Ferreira Lopes, adstritos a uma delas, o Centro de Instrução de Condução Auto n.º 5 (CICA 5), em Lagos, estavam a par dos preparativos do movimento militar e tinham participado em algumas das reuniões conspiratórias que antecederam a sua concretização.
Filho de pais algarvios, ele natural de Lagos, ela de Portimão, José Castelo Glória Alves nasceu em 1942, em Abrantes, onde o pai, oficial de carreira, estava na altura colocado. A sua infância e adolescência não foram muito diferentes das de outras crianças e jovens, filhos de pai militar, como tal, sujeitos às contingências da vida itinerante da família, hoje numa terra, amanhã noutra. Aos dez anos, completada a instrução primária, ingressa no Colégio Militar, estabelecimento de ensino vocacionado para a educação dos filhos dos oficiais e que frequentará até ao 6.º ano dos Liceus (atual 10.º ano de escolaridade). Em 1961, ano do início da guerra colonial em Angola, concluído o 7.º ano no Liceu de Leiria, ingressa na Academia Militar, no Curso de Artilharia, que completará quatro anos mais tarde. Colocado como alferes na Figueira da Foz, é, pouco depois, chamado a prestar provas para o Curso de Comandos, a que tinha antes concorrido como voluntário.
Admitido no Curso, será, no mesmo ano de 1966, ainda instruendo, mobilizado para uma comissão de serviço, em Moçambique, a primeira de três que cumprirá até 1974, a última das quais na Guiné, já depois da revolução, em pleno processo de descolonização. Concluído o Curso de Comandos, agora no posto de tenente, é, no último ano da comissão, ferido numa perna por um engenho explosivo, numa operação militar, o que obrigará à sua hospitalização e posterior evacuação para a metrópole, para continuar a recuperação.
Em 1969, já capitão, casado e pai do primeiro filho, é mobilizado para a sua segunda comissão, novamente em Moçambique, onde comanda uma companhia de Comandos. Regressado em finais de 1972, é, por fim, colocado no CICA 5, em Lagos, onde, no ano seguinte, lhe nascerá o segundo filho (o terceiro virá apenas em 1978).
Tendo embora tido uma formação vocacionada para a ação e para o risco, muitas vezes temerário, como era a dos Comandos, isso não o impede, tal como a outros militares, de se questionar sobre o sentido último da guerra, que lhe é imposta pelo poder político e, em última análise, a legitimidade desse mesmo poder político. Nas messes e outros espaços de convívio do oficialato, no isolamento claustrofóbico das matas africanas ou no ambiente mais descontraído dos quartéis da metrópole, as conversas, obviamente com algumas cautelas, não fosse o interlocutor não ser de confiança, tinham, algumas vezes como tema estes assuntos:
«Conversávamos e achávamos que já tínhamos dado tempo suficiente ao Governo para, com os legítimos representantes dos movimentos de libertação, nossos inimigos no terreno, chegar a uma solução negociada que pusesse termo à sangria que já durava há mais de uma dezena de anos, sem fim à vista.
Também não eramos imunes ao ambiente de medo e violência criados pela PIDE/DGS e Polícia de Choque, que era do conhecimento público e que nos repugnava e envergonhava.»(1)
Mais novo, três anos, do que Glória Alves, Filipe Ferreira Lopes nasceu em 1945, em Lisboa, onde passou a infância e, entre 1955 e 1963, frequentou o Liceu Camões. O pai, tal como a mãe, de origens beirãs (ele, natural de Viseu, ela, de Castro Daire), estava ligado ao meio castrense por via do seu trabalho, como civil, na Fábrica Militar de Braço de Prata. Aos dezoito anos, ingressa na Academia Militar, no Curso de Infantaria, que frequenta durante quatro anos. Em 1968, ainda alferes, é mobilizado em comissão de serviço para a Guiné, integrado numa companhia, que, por morte do seu comandante numa operação militar, virá, pouco depois, a comandar. Regressado desta colónia em 1969 (ano em que virá a casar), foi, pela primeira vez, já tenente, colocado em terras algarvias, neste caso no Centro de Instrução de Sargentos Milicianos (CISMI), em Tavira, onde desempenhará funções ligadas à instrução de futuros sargentos milicianos e, no ano seguinte, lhe nascerá a filha. Em 1971, já capitão, voltará à Guiné para mais uma comissão de serviço, de novo como comandante de uma companhia em teatro de guerra, o que o impedirá de, no ano seguinte, acompanhar o nascimento e os primeiros meses do segundo filho. Em 1973, de novo no Algarve, é colocado no CICA 5, à frente de uma companhia de instrução.
A par das questões de carreira, relacionadas com a ultrapassagem dos capitães do Quadro Permanente pelos capitães milicianos, comum a muitos outros militares, a guerra, que, no caso da Guiné, entre 1971 e 1973, quando ali esteve pela última vez, sofrera um considerável agravamento, foi um fator determinante para a sua tomada de consciência do beco sem saída a que a mesma tinha conduzido o país:
«Vivia-se na Guiné um período dramático em termos operacionais, com o aumento da capacidade militar do inimigo, em particular a posse de mísseis terra-ar que neutralizavam a nossa principal vantagem – a aviação. Esta capacidade de dificultar a ação dos nossos meios aéreos permitia a realização de ataques continuados ao contrário do que acontecia anteriormente, em que as ações de fogo contra os nossos aquartelamentos ocorriam só durante a noite. Corria-se o risco de uma derrocada militar e, à semelhança do ocorrido na Índia, para os políticos só podia haver “soldados portugueses vitoriosos ou mortos”.
Em paralelo com esta situação, que, em alguns momentos, chegou a ser desesperante, muitos rapazes em idade militar davam o “salto” para o estrangeiro, principalmente os do contingente recrutável para as funções de enquadramento (oficiais e sargentos).»(2)
Ou seja: com o agravamento da situação militar no terreno, nomeadamente na Guiné e em Moçambique, muitos oficiais dos escalões intermédios temem ser responsabilizados por um desfecho negativo da guerra, que sabem que, tal como na Índia, em 1961, não pode ser vencida militarmente e para cuja solução política os governantes recusam a via da negociação. Com o conflito penosamente a arrastar-se há mais de uma década – inicialmente apenas em Angola, logo depois também na Guiné e em Moçambique – o Governo confronta-se com dois grandes problemas: a falta de material de combate adequado, cada vez mais difícil de obter, mesmo junto de alguns países aliados mais fiéis; a falta de efetivos militares em postos de comando, nomeadamente das companhias, as unidades-base em que assentava grande parte do dispositivo militar de combate aos guerrilheiros nas matas das três colónias em guerra. A falta destes efetivos e, como corolário disso, a publicação, em 1973, de dois decretos-lei que, para resolver esse problema, permitem que os capitães milicianos – mediante a frequência de um curso intensivo de apenas dois semestres – ultrapassem em antiguidade os capitães do Quadro Permanente, oriundos da Academia Militar, mais não fazem do que aumentar o descontentamento surdo que, há algum tempo, grassa entre muitos deles.
No início, de forma inorgânica, esse descontentamento tem a sua primeira expressão visível em junho de 1973, por altura do Congresso dos Combatentes do Ultramar, uma iniciativa dos setores ultra do regime, de apoio incondicional à continuação da guerra colonial. Preocupados com o aproveitamento em termos políticos que o regime se prepara para fazer dessa iniciativa, centenas de oficiais dos escalões intermédios em serviço no continente e na Guiné enviam telegramas, demarcando-se do Congresso e das conclusões que nele venham a ser aprovadas. A partir de julho, com a publicação dos polémicos decretos-lei, o movimento alastra e ganha expressão orgânica. A 9 de setembro, uma reunião alargada, em Alcáçovas, nos arredores de Évora, junta 136 militares. A partir desta data, as reuniões sucedem-se a um ritmo quase mensal: a 6 de outubro, em Odivelas, a 24 de novembro, em S. Pedro do Estoril, a 1 de dezembro, em Óbidos, e, por fim, a 5 de março, em Cascais, a última e a mais participada (198 oficiais, em representação de 600, um número considerável que diz tudo sobre a amplitude que o movimento tinha, entretanto, alcançado). Dos presentes, 170 representavam o Exército, 24 a Força Aérea e 4 a Marinha, nos últimos dois ramos, ainda apenas como observadores.
A princípio muito centrado nas questões profissionais decorrentes dos decretos-lei, o movimento, onde maioritariamente pontificam os capitães do Exército (daí o nome de Movimento dos Capitães por que foi inicialmente conhecido), ganha progressivamente um conteúdo político de contestação do regime. Admitida pela primeira vez na reunião de Odivelas, a hipótese de recurso a um golpe de Estado (nessa altura ainda minoritária) ganha novos adeptos e é definitivamente subscrita por uma larga maioria dos presentes na de Cascais.
Impotente para parar a contestação do oficialato intermédio, o regime cede uma e outra vez: primeiro, suspendendo os decretos-lei, mais tarde revogando-os. Em desespero de causa, o Governo alicia mesmo os oficiais com aumentos de vencimentos e outras regalias, destinadas a esvaziar a contestação, que, no entanto, não os demovem.
A DECOMPOSIÇÃO DO REGIME
O processo de contestação dos oficiais intermédios acompanha a decomposição acelerada do regime e é por ela influenciado. Esgotado pela guerra, que não pode vencer e sem outra solução que não a de continuá-la, isolado externa e internamente, perdidas que foram de vez as ilusões de uma liberalização por dentro que, embora muito tímida, abandonou às primeiras dificuldades, o Governo desde 1968 chefiado pelo professor Marcelo Caetano acumula desaires atrás de desaires, ao mesmo tempo que reforça a censura à imprensa e a repressão sobre os opositores.
Sem os deputados da ala liberal – Francisco Sá Carneiro, João Pedro Miller Guerra, Joaquim Magalhães Mota, Francisco Pinto Balsemão, etc., etc. – que, na legislatura anterior (1969-1973), a partir de dentro, tinham, em vão, tentado introduzir algumas modificações no funcionamento do regime, as listas de candidatos da ANP (Ação Nacional Popular, o partido único, sucessor da antiga União Nacional, pela qual aqueles tinham sido eleitos, em 1969) às legislativas de outubro de 1973 ficam reduzidas aos ultras e indefetíveis de sempre (exceção à regra, o açoriano João Bosco Mota Amaral foi o único dos deputados mais conhecidos desta ala a manter-se na Assembleia). Desta vez unida, sob a égide da CDE, ao contrário do que acontecera em 1969, mas sem ilusões quanto ao resultado final, a Oposição, por falta de condições, não concorre em vários círculos (como foi o caso do de Faro) e acaba mesmo, nos restantes, por desistir nas vésperas da votação. Na campanha eleitoral, as sessões da Oposição, por imperativo do Governo limitadas a espaços fechados e cuja duração não podia ir além da meia-noite, são interrompidas pela Polícia sempre que um orador se refere à guerra ou ao problema colonial.
No início do novo ano, na cidade da Beira, em Moçambique, os colonos manifestam-se ruidosamente contra os militares, a quem culpam pela situação. Pouco depois, em fevereiro, o antigo Governador da Guiné general António de Spínola, recém-regressado desta colónia, que pouco mais de um mês antes tinha sido empossado como vice-chefe do Estado Maior General das Forças Armadas (um cargo até aí inexistente, especialmente criado para si), publica o livro Portugal e o Futuro. O livro, que se esgota num ápice, causa ondas de choque nas fileiras do regime e na população.
Quebrando um velho tabu da ditadura, Spínola afirma que «a vitória exclusivamente militar é inviável» ao mesmo tempo que advoga uma solução política para o conflito. A proposta – uma federação de Portugal com as suas colónias -, ainda que sem admitir a independência destas, pela qual se batiam os movimentos de libertação, com o apoio de grande parte dos países e organizações internacionais (nomeadamente a ONU), divide a cúpula político-militar da “situação”: de um lado, ainda que bastante minoritários, os que, como Spínola, a troco de uma autonomia controlada para os territórios coloniais, pretendem in extremis evitar uma derrota militar; do outro, largamente maioritários, os que,recusando quaisquer mudanças, se mantêm inamovíveis na defesa do que chamam “a integridade da terra portuguesa, no seu todo pluricontinental e multirracial, do Minho a Timor” (tese a todo o momento propagandeada pelo regime mas sobre a qual, malgrado a sua suposta importância para o país, aquele sempre recusara qualquer discussão). Habituado a ocultar do conhecimento dos cidadãos tudo o que pudesse prejudicar a imagem do regime, o poder político pouco pode fazer, desta vez, para impedir a difusão de um livro que, além de ter como seu autor uma figura até aí intocável, como Spínola, tinha sido antes autorizado (e, desta forma, validado) pelo chefe do Estado Maior General das Forças Armadas e seu superior hierárquico, general Francisco da Costa Gomes.
Escrita numa linguagem metafórica e algo brincalhona, destinada a fintar a censura, por um jovem estudante universitário, para um amigo militar, algures em Angola (o autor deste estudo), a carta de que a seguir se reproduz um excerto é, em si, elucidativa do impacto que o livro estava a ter no país (ou, pelo menos, na sua parte mais politizada, escolarizada e urbana, da qual Lisboa era na altura o exemplo supremo):
14/3/1974
«Salve Romano!
(…) Cá, na cidade sede do Império, as coisas continuam a decorrer sob o signo da monotonia. Sabe-se que há grande agitação no Senado, que os exércitos de César têm estado de prevenção, mas não se sabe mais nada. Um comandante das hostes imperiais, que regressou há pouco dos confins do Império, publicou um livro em que diz que progressivamente se deve deixar os bárbaros dessas paragens governarem-se por si próprios, embora mantendo contratos, união e amizade com eles. Diz que a vitória das legiões é impossível. Os senadores, cônsules e amigos de César acham que as coisas devem continuar como estão, alguns [outros] são favoráveis à mudança e, portanto, gera-se toda uma série de agitação e conflitos.»(3)
Sem alterar o desenrolar da contestação dos oficiais que, independentemente do livro ou dos eventuais projetos pessoais de poder do seu autor, desde setembro seguia o seu próprio caminho, a publicação de Portugal e o Futuro tem um efeito de “boomerang” sobre o regime, que, incapaz de reagir, patenteia sinais evidentes de fraqueza e desnorte.
Nas semanas seguintes, os acontecimentos sucedem-se em catadupa. Numa tentativa desesperada de contenção dos danos, o Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, dirige-se à Assembleia Nacional em busca da legitimidade que, não obstante a sua falta de representatividade, julga que esta ainda lhe pode dar. Julgando, por sua vez, ainda representar as Forças Armadas, os oficiais generais, fora algumas honrosas exceções – como Costa Gomes e Spínola – acorrem a S. Bento, jurando fidelidade ao Governo. Pressionado pelo Presidente da República, almirante Américo Tomás, e pelos ultras, que rodeiam este, Marcelo, que vira antes recusado por Tomás o seu próprio pedido de demissão, exonera os dois generais rebeldes. A 16 de março, por precipitação ou como reação à demissão de Spínola (ainda hoje não se sabe), uma coluna militar sai das Caldas da Rainha em direção a Lisboa. Por algumas horas, Marcelo refugia-se na base aérea de Monsanto. O regime treme…
Na Universidade, pese embora a aparente acalmia, o mal-estar que há muito caracterizava as relações entre estudantes e Governo tinha-se tornado endémico. Fruto da falta de informação e da censura – porque os jornais só publicam o que o poder político permite – os boatos alastram. Uma outra carta, dirigida ao mesmo militar, mas escrita por outro estudante universitário, dá conta do ambiente político escaldante que se vive no país:
Paz de Lisboa, 6/3/74
«(…) O ambiente estudantil está muito calmo. (…) O ambiente político, pelo contrário, escalda que se farta. Saiu um livro assinado pelo General António de Spínola, de título Portugal e o Futuro. Um dos temas que trata é o dos territórios ultramarinos. Ainda não li, embora o tenha aqui. De qualquer maneira, parece que quebrou um tabu (…). Não estou bem certo do conteúdo do livro pelo que não me vou alongar a esse respeito porque posso estar a meter água. De qualquer maneira, acho que há uma passagem em que ele fala da impossibilidade de vencer pelas armas e que a solução teria de ser encontrada pelos políticos. (…) Houve, no entanto, uma reação notável da parte do Presidente do Conselho. Numa conversa em família reafirmou a posição de se permanecer no Ultramar, mesmo que à custa de mártires para a Nação, que de maneira nenhuma se cederia, que assim nos exigiam a história e o sangue dos jovens lá derramado. (…)
De qualquer maneira acho que houve uma reação por parte do poder político à ingerência do poder militar no assunto. E o livro, vindo de onde veio, tomou foros de bomba política.»(4)
Já depois do golpe falhado das Caldas, a escassos três dias do dia que tudo mudaria, de permeio com alguns dos boatos que então circulavam (assinalados a itálico), o mesmo estudante anotava:
Lisboa, 22 de abril de 1974
«(…) Neste país onde não costuma acontecer nada até houve uma “guerra das loiças”. Começou nas Caldas e acabou em Sacavém (ou perto do aeroporto, não sei bem). O comunicado oficial é pouco mais ou menos exato, mas houve bocas de que tinha sido preparada uma coisa em grande e que adiaram na sexta-feira, não tendo a mensagem chegado às Caldas. Não sei, a coisa foi um pouco esquisita, feita assim à balda, e sobretudo admira-me como é que conseguiram chegar perto de Lisboa, sem terem sido intercetados, nem pela Força Aérea nem por outras unidades, se não houvesse uma certa… “indiferença”. Spínola disse que não tinha nada a ver com aquilo e até acredito. Enfim, tudo passou. Mas também há notícia e que parece que é certa de que houve um atentado contra o Presidente do Conselho, tendo morrido o motorista. Parece que a extrema-direita cerrou fileiras em volta do Presidente da República e o Presidente do Conselho esteve mesmo em vias de ser substituído. Não passam também de bocas, mas como não há fumo sem fogo…
Em Económicas também o caso está sério. Partiram a cabeça a um “amigo” do diretor e não a partiram a ele porque não puderam e o resultado foi fecharem a escola. Agora vai abrir com “inovações”. Cartões plastificados para circulação no interior, arame farpado, corredores de sentido único, zonas separadas, polícia de choque lá dentro e “gorilas” também ao que parece. Uma cópia fiel do Técnico, com umas suspensões, etc., etc. Só resta saber se a coisa se vai arrastar como lá. O tempo o dirá.»(5)
Mais nova, mas nem por isso menos consciente dos efeitos nefastos da censura, que tudo devassava, inclusive a correspondência, uma estudante liceal escrevia, por sua vez, ao mesmo militar:
Lisboa, 27-3-74
«(…) Isto cá por Lisboa, e não só, não vai lá muito bem (…) Generais (…) demitidos, prisões de militares, revolta em alguns quartéis, etc. Calcula o ambiente que me cerca, pois acho preferível não falar muito do assunto. Já sabes que a censura corta muita coisa e podia cortar também a carta, e até algo mais!
(…) O envelope vinha bem colado de mais, até me custou abri-lo, foste tu ou isto aconteceu na viagem? … A cola até uniu as folhas ao envelope. Reparando bem, até parece que foi aberto. (…)»(6)
Sem preparação prévia, da autoria de um grupo de oficiais, na sua grande maioria ligados a Spínola, mas sem o envolvimento direto das estruturas dirigentes do MFA, que assim se mantêm incólumes, o fracassado golpe quase deita tudo a perder, mas acaba involuntariamente por se revelar útil para os capitães. Ao entregar parte substancial da contenção e da repressão do golpe à GNR e à PIDE/DGS, o Governo dá um sinal de fraqueza e de falta de confiança nos militares. Atentos, estes não deixam de tirar as devidas ilações. Por um lado, sobre as vulnerabilidades reveladas pelas forças fiéis ao regime na contenção do mesmo. Por outro, sobre a necessidade de, numa futura ação, proceder previamente a um rigoroso planeamento e coordenação de meios e esforços, capaz de evitar o que, no passado, sempre acontecera: a saída isolada e voluntariosa de uns poucos oficiais que depois, por falta desse planeamento e coordenação, não era seguida por todos os outros.
A ORDEM DE OPERAÇÕES
Corolário lógico destas preocupações, o Plano Geral de Operações (ou Ordem de Operações, como é mais conhecido), que, uma semana depois do 16 de março, Otelo Saraiva de Carvalho tinha sido incumbido de elaborar pela Comissão Coordenadora do MFA, fica concluído a 9 de abril, a tempo de o golpe poder ser desencadeado entre 22 e 29 deste mês, altura do ano considerada ideal por, nela, o Governo se encontrar concentrado no combate às habituais iniciativas oposicionistas de comemoração do 1.º de Maio, proibidas pelo regime.
Com o nome de Viragem Histórica, a ação militar, a ser conduzida pelas unidades às ordens do Movimento das Forças Armadas, tem como missão final «o derrube do governo vigente» e «a implementação, a curto prazo, de uma democracia política». Na execução dessa missão, e de acordo com a ideia de manobra explicitada por Otelo, a cidade de Lisboa, capital do país e sede do poder político-militar, é considerada «o fulcro de toda ação» a desenvolver pelas diferentes forças comprometidas com o MFA. Executando um movimento geral «de fora para dentro», as forças militares exteriores à área de Lisboa têm como tarefa atrair e dispersar as forças governamentais, cabendo às forças instaladas no interior da cidade cercar e conquistar os objetivos considerados mais importantes para o êxito do movimento militar.(7)
No que respeita ao Algarve, parte integrante do setor sul, um dos três (fora o Porto) em que, para efeitos operacionais, o território do continente fora dividido, o Plano Geral de Operações inicialmente gizado por Otelo atribuía missões às três unidades sediadas na província: CICA 5, de Lagos (sabotagem de viaturas que pudessem ser pedidas pelo RI 4 para uma eventual ação de socorro às forças governamentais); RI 4, de Faro (ocupação das instalações do Aeroporto de Faro, impedindo a descolagem e aterragem de quaisquer aviões); CISMI, de Tavira (controlo da fronteira de Vila Real de Santo António, não permitindo a entrada ou a saída de quaisquer viaturas). O plano não chegará, no entanto, no caso das duas últimas, a ser concretizado. Como recorda Rosado Luz, o capitão algarvio encarregue das ligações entre a cúpula do MFA e as unidades do sul do país:
«A atuação das unidades militares do meu Algarve acabou por ficar bastante abaixo das expectativas iniciais. Durante meses havia contactado as suas 3 Unidades Militares (…). No início a adesão foi excelente. Só que, com as contínuas mobilizações para a guerra colonial, ao longo dos meses, desapareceram de Tavira e Faro os nossos homens de confiança e nenhum dos que lá ficou nos dava garantias de ser totalmente confiável, pelo que anulámos todas as eventuais missões para essas duas unidades.»(8)
Além da Ordem de Operações, outros instrumentos foram de importância fulcral para o sucesso do conjunto da ação militar: o Anexo de Transmissões, delineado pelo tenente-coronel Garcia dos Santos, as duas canções – E depois de um adeus e Grândola Vila Morena – que, na rádio, deram o sinal para o início das operações, o Posto de Comando, que, a partir do Regimento de Engenharia 1, na Pontinha, dirigiu e coordenou o movimento das tropas no terreno, os comunicados do MFA ao longo do dia dirigidos à população e, por último, mas não menos importante, o Programa do MFA, dado a conhecer no dia 26 e que desde as primeiras horas balizou de forma inequívoca as intenções democráticas e progressistas do movimento militar em curso.
Os documentos contendo as instruções sobre as missões a efetuar por cada uma das unidades no decurso do movimento militar seriam entregues aos delegados de cada uma delas em dois momentos distintos: a ordem de operações, aos delegados das unidades dos setores norte, centro e sul do país (Ferreira Lopes, no caso do CICA 5), a 17, 18 e 19 de abril, pelo próprio Otelo, em três reuniões sucessivas na área de Lisboa; o Anexo de Transmissões, eventuais alterações na missão entretanto verificadas, a data-hora da execução da mesma e outras instruções, a cada um dos delegados (Glória Alves, no caso do CICA 5), em mão própria, pelo respetivo oficial de ligação (Rosado Luz, no caso desta unidade), no dia 24, menos de 24 horas antes do arranque do movimento militar.
OS PREPARATIVOS
Juntos no CICA 5 desde o início de 1973, quando se conhecem, até aí com percursos militares distintos e experiências em teatros de guerra diferentes, Glória Alves e Ferreira Lopes não tardam, com a convivência e algumas conversas mais sérias, a descobrir que estavam «no mesmo barco»:
«Em 1973, sabendo das reuniões que foram acontecendo um pouco pelo país, por um oficial do Serviço de Reconhecimento das Transmissões (SRT), Capitão Teixeira, e sabendo os seus objetivos, íamos manifestando, eu e o Capitão Lopes, o nosso interesse em participar ativamente no Movimento.
O Capitão Teixeira, meu conhecido, tinha como missão da sua especialidade inspecionar o seu Serviço, que possuía, instalado num torreão do Castelo anexo ao CICA 5 num Posto do SRT que fazia a escuta dos Emissores do Norte de África, elaborando relatórios que ele verificava, vindo de Lisboa frequentemente, no local. Este Posto era de acesso muito reservado até para os oficiais do CICA 5. Como tal era o Capitão Teixeira visita muito regular, e com ele passeávamos, em amena conversa, junto ao Forte do Pau da Bandeira, que era, nessa altura, encargo do CICA 5.»(9)
O CICA 5 é uma unidade pequena, com um quadro de oficiais intermédios reduzido (dois majores e três capitães, um deles miliciano), o que dificulta o natural secretismo das deslocações. Ainda assim, isso não impedirá Glória Alves e Ferreira Lopes de estarem presentes numa das reuniões mais participadas do Movimento, por sinal a última e a mais decisiva, em Cascais (além de outras mais restritas, posteriormente).
Até pouco antes os dois únicos oficiais na província por dentro da conspiração e com uma ligação formal ao MFA, Glória Alves e Ferreira Lopes têm, nos poucos dias que faltam, duas tarefas: envolver outros oficiais, quer da sua unidade, quer do resto da província, e reunir os meios necessários à concretização da missão de que estavam incumbidos.
Contactado ainda no início de abril, o capitão miliciano Campinas (filho do escritor e democrata algarvio António Vicente Campinas), em serviço no CICA 5, foi o primeiro dos oficiais a manifestar a sua adesão «sem reservas» ao Movimento. Entusiásticas foram também as adesões de outros dois oficiais desta unidade: o major Carlos Leal Branco, no dia 18, e o comandante, o também major Castela Rio, no dia 22 (ainda que, no caso deste último, os factos viessem a posteriori desmentir as suas palavras).
«No dia 22 de abril, eu e o Lopes demos conhecimento ao nosso comandante (…), da operação do Movimento e da missão que nos cabia. (…) O comandante apertou-me a mão e disse: “Também vou, pá!” Eu, na altura acreditei, até porque ele na messe dos oficiais citava muitas vezes Manuel Alegre. Mas não passou disso.»(10)
No resto, os contactos foram infrutíferos. Na sequência de diligências anteriores, quer de Rosado Luz, quer de Glória Alves, mas inconclusivas, Ferreira Lopes, que dois dias antes, na Linha do Estoril, além de receber das mãos de Otelo a ordem de operações, tinha sido incumbido dessa tarefa, passa por Tavira, no dia 21, «a fim de saber qual a decisão definitiva» dos oficiais daquela unidade. Em reunião com este oficial, o Major Nascimento e os Capitães Cabrita e Oliveira e Silva «mantiveram as objeções que vinham apresentando do antecedente, garantindo, no entanto, que não atuariam contra o Movimento das Forças Armadas». E, a pretexto de consultar outros oficiais, voltam a prometer para mais tarde «uma resposta definitiva», que, entretanto, não chegará a ser dada. Por contactar, ficou o RI 4, de Faro, «em virtude de nesta unidade não se ter conhecimento do antecedente de nenhum oficial simpatizante, exceto o Major Silva que estava a aguardar transferência para a PSP.»(11)
As instruções finais – Anexo de Transmissões, data-hora e outras indispensáveis ao sucesso da missão – são entregues a Glória Alves, já na manhã de dia 24, por Rosado Luz, que as recebera do próprio Otelo ao fim da tarde do dia anterior, no Parque Eduardo VII, em Lisboa, e, na sua posse, viajara durante toda a noite, no seu automóvel (acompanhado, à distância, noutro carro, por um outro camarada, Veiga Vaz, com as instruções em duplicado, caso este tivesse que substituí-lo), para as entregar em mão a cada um dos delegados das várias unidades do sul do país envolvidas no movimento (e das quais o CICA 5, de Lagos, ao raiar do novo dia, seria a derradeira):
«Quando cheguei a Lagos estava a amanhecer. Depois de uma longa noite de nevoeiro, assisti com o Veiga Vaz a um nascer do sol radioso sobre a baía de Lagos, o que me deixou com a certeza de que o Dia seguinte iria ser o início de uma nova Era. O Glória Alves recebeu os “Anexos” e foi aqui que terminou a minha primeira missão da Operação “Viragem Histórica”.»(12)
À missão inicial, com o nome de código “Bangkok”, a ser executada às 8.00 horas do dia 25, e que, no Plano Geral de Operações, previa apenas a não cedência de viaturas ao RI 4, fora, entretanto, acrescentado um novo objetivo: a ocupação e a defesa dos transmissores e repetidores da GNR, da Guarda Fiscal (GF) e da Legião Portuguesa (LP), no pico da Fóia. Sem uma importância decisiva para o sucesso do movimento, a tomada da Fóia terá tido, para os dois oficiais para ela destacados, um valor sobretudo simbólico, tendo sido incluída, à última hora, mais por insistência sua do que por necessidade efetiva.(13) Ao CICA 5, a unidade responsável pelo cumprimento da missão, foi, por sua vez, atribuído o nome de código “Sierra 4”.
Prestes a chegar a hora marcada, a missão reúne todas as condições para vir a ser um sucesso. Desde logo pelo prometido envolvimento na ação militar de todos os oficiais de mais elevada patente do CICA 5, entre eles o seu comandante (os oficiais de mais baixa patente ainda não tinham sido abordados, mas não era expectável que se opusessem). A este, junta-se um outro facto, tão inesperado como providencial: a coincidência da noite de 24 para 25 de abril com aquela em que decorriam os exercícios de Ordem Pública. De periocidade semestral e decididos pelo comando da respetiva Região Militar, estes exercícios obrigavam à saída de tropas, devidamente armadas e equipadas, de uma unidade para um determinado sítio, na sua zona de ação, e à sua permanência aí durante uma noite. Com um pelotão, por essa razão, nessa noite, em exercício na Barragem da Bravura, na Serra de Espinhaço de Cão, algures entre Lagos e Monchique, Glória Alves não precisava assim de se preocupar com as suspeitas que a saída de tropas do quartel, de madrugada, naturalmente poderia despertar.(14)
A OCUPAÇÃO DA FÓIA
Aproximando-se as 0 horas do dia 25, os cinco oficiais envolvidos reúnem-se no quartel à espera do sinal que, na Rádio Renascença, confirmaria o início do movimento militar.
«Nesta altura, o Major Castela Ria começou a manifestar dúvidas acerca do êxito da operação e mesmo após a confirmação da hora H transmitida pela Rádio Renascença não quis atuar instando com os restantes para que se mantivessem inoperantes. O referido oficial manifestava na altura indícios de embriaguez e tão depressa informava que ia ocupar a Fóia, para o que escolheu como acompanhante o Capitão Glória Alves, como caía em estado depressivo e fazia as perguntas mais díspares acerca do êxito da operação».(15)
Neste impasse, e numa tentativa derradeira de o fazer superar as suas dúvidas, os outros quatro oficiais conseguem que Castela Rio se comprometa a avançar no cumprimento da missão logo que, na rádio, seja transmitido o primeiro comunicado do MFA confirmando que o golpe tinha, de facto, sido desencadeado.
“Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas…” São 4.26, quando, aos microfones do Rádio Clube Português, pela voz de Joaquim Furtado, aquele é transmitido. No país inteiro, tropas provenientes das mais diferentes unidades marcham em direção aos objetivos que se propõem atingir (fora os que, a essa hora, a cargo de unidades da capital, já tinham sido concretizados). Não podendo esperar mais, e sem que Castela Rio, eventualmente para ganhar tempo, cumprisse o que antes prometera, os quatro oficiais decidem dar início à sua missão. Informados do que se passava, camaradas subalternos, sargentos e praças da unidade aderem de imediato e «sem reservas».
Um facto novo viria, entretanto, complicar as coisas. Por volta das 5.00, o comandante da Região Militar de Évora, por instruções do Ministério do Exército, entretanto alertado do golpe em marcha no país, ordena a colocação de todas as suas unidades em estado de prevenção rigorosa. Ato contínuo, o Comando Territorial do Algarve, hierarquicamente dependente daquele, ordena o mesmo em relação às três unidades da província. Recebida a ordem, e escudado na mesma, o comandante do CICA 5 ordena a Glória Alves que faça regressar ao quartel o pelotão em exercícios na Barragem da Bravura, o que este obviamente recusa.
Agarrado a Glória Alves, tentando desesperadamente retê-lo, perante a estupefação dos numerosos praças que assistiam, o atormentado comandante protagonizaria uma das cenas mais patéticas da noite:
«Disse ao comandante que iria sair, sim, mas para cumprir a missão do MFA. [À porta de armas, já fechada], o comandante, que, nessa noite, me pareceu um pouco ébrio, tentou impedir-me de sair. Mas eu consegui passar. E os guardas nem se mexeram. O capitão Lopes estava lá fora à minha espera. Entrei no jipe e fomos diretos para a Barragem da Bravura.»(16)
Aqui chegados, os dois oficiais acordaram os homens que, na véspera, sob o comando de um oficial miliciano, aí tinham acampado e, obtida a pronta adesão de todos, puseram-se a caminho do objetivo previamente definido. No pico da Fóia, o ponto mais alto da serra de Monchique e da província, onde chegaram às 7.50, dez minutos antes da hora prevista, «estava uma manhã horrível de vento e de frio»:
«Não encontrámos qualquer oposição. A única força que ali estava eram dois homens da Guarda Fiscal, dentro de uma casinhota. Explicámos a situação e eles entregaram logo as suas Mauser.»(17)
Na execução da missão que ali os levara – desligar os repetidores da GNR, GF e LP – Glória Alves e Ferreira Lopes tiveram, desta vez, a sorte pelo seu lado: a presença providencial, naquele local, do técnico do Rádio Clube Português que, pouco antes, estivera a fazer a manutenção das antenas:
«Quis saber o que se estava a passar e eu expliquei: “Não há problema”, disse ele. E lá foi desligar as antenas com boa disposição.»(18)
Enquanto isto, no CICA 5, em Lagos, depois da saída dos dois capitães, Castela Rio telefonara para o Comando Territorial do Algarve, avisando o seu comandante, brigadeiro Prazeres, do que se estava a passar, nomeadamente da intenção daqueles de tomar a Fóia. Informado da situação, e após conferenciar por telefone com o comandante da Região Militar de Évora e seu superior hierárquico, brigadeiro Carrinho, Prazeres ordena ao comandante do CICA 5 que mande retirar o pelotão que ocupa a Fóia, ameaçando com o envio para lá de «uma companhia auto transportada do RI 4, de Faro»(19), bem como de outros efetivos, não especificados, caso esta não se revelasse suficiente. A ordem seria transmitida a Glória Alves e Ferreira Lopes, às 10.30, pelo major Leal Branco, que, entretanto, se tinha deslocado à Fóia com esse fim. Real ou bluff, o risco era demasiado grande face ao desconhecimento da dimensão e poder de fogo das forças adversárias e da escassa importância que a Fóia tinha para o sucesso do movimento. Gorado o segredo que estava na base do expectável êxito da missão, e querendo, além disso, evitar um confronto desnecessário, do qual resultassem vítimas, aos dois oficiais não resta outra solução senão ordenar a retirada do pelotão e regressar ao aquartelamento.
Ato contínuo, o centro retransmissor foi ocupado por uma força de cerca de vinte homens da GNR de Portimão, sob o comando do seu comandante, tenente Correia, que, agindo às ordens do brigadeiro Prazeres, além de voltar a ligar as antenas antes desligadas, desligaria por sua vez as das três estações de rádio que emitiam em FM para a província: Emissora Nacional, Rádio Clube Português e Radio Renascença. Desta forma, estas estações, que, nas primeiras horas, quando ocupadas pela força comandada por Glória Alves, tinham podido transmitir os comunicados do MFA e as primeiras notícias sobre o movimento militar em curso, ficaram, a partir daqui, até às 22.00, com as suas emissões interrompidas, o que, durante esse período, privou a população do Algarve de qualquer informação sobre o que se estava a passar no país.
Irónico, Otelo comentaria, alguns anos depois, no seu livro Alvorada em Abril:
«Ah! Prazeres, Prazeres! Que nesse dia retiraste o prazer a tantos bons algarvios que a ele também tinham direito!»(20)
Entretanto, chegados a Lagos, os dois capitães são confrontados com uma intimação para se apresentarem em Faro, no Comando Territorial do Algarve. Acompanhados pelo major Leal Branco, os dois oficiais chegaram ali às 17.00. A essa hora, em Lisboa, no meio de grande entusiasmo popular, as forças de Salgueiro Maia cercavam já o Quartel do Carmo, estando iminente a rendição de Marcelo Caetano. Cauteloso, porventura conhecedor desse facto, Prazeres ordena a apresentação dos dois oficiais no RI 4 (mas sem os mandar prender), deixando, no entanto, claro que, «caso o Movimento perdesse, (os dois) prestariam contas, caso o Movimento ganhasse, regressariam ao CICA 5».(21) Uma hora depois, ao serem mandados de volta à sua unidade, Glória Alves e Ferreira Lopes tiveram enfim a certeza de que a sua ação não tinha sido em vão e o movimento tinha triunfado.
Entre as forças militarizadas e policiais, a GNR foi a única, no Algarve, onde se registaram casos de oposição ao movimento militar. Em Portimão, o seu comandante, tenente Correia, «referenciado como elemento das ultradireitas e colaborador e informador da ex-DGS», comandou a força que, ao fim da manhã do dia 25, reocupou a Fóia. Por sua vez, em Silves, a GNR local barricou as ruas, impedindo o tráfego na localidade. Já a PSP e a Guarda Fiscal abstiveram-se de qualquer atitude até à adesão dos respetivos comandos em Lisboa.(22)
Chegado a casa, em Portimão, «já tarde», na noite de 25 de Abril, «para jantar com a família e relatar o que se passava», Glória Alves, «tomado pelo cansaço e pelo sono», adormeceria «na altura em que aparecia na RTP a Junta de Salvação Nacional».(23)
Desde as primeiras horas do dia 26 sob o comando supremo da nova Junta de Salvação Nacional, as Forças Armadas só então reatariam a tradicional cadeia hierárquica, interrompida durante o golpe. No Algarve, nos dias seguintes, as alterações nas chefias militares limitaram-se quase só à substituição, no Comando Territorial, do brigadeiro Prazeres, que, no dia 25, se tinha oposto ao movimento, pelo coronel Octávio Pimentel, que dantes comandava o RI 4. O comando desta unidade seria, por sua vez, assumido interinamente pelo até aí 2.º comandante tenente-coronel Bernardino Santos.
Sintoma do novo clima de liberdade entretanto vivido no país, o novo comandante territorial do Algarve reuniu, dias depois, com os representantes dos órgãos de informação radicados na província para lhes dar conta do que se estava a passar no plano militar e da constituição de uma secção, naquele Comando, para futuros contactos com a comunicação social.(24)
No CISMI, em Tavira, onde antes, apesar dos esforços feitos, nenhum oficial se tinha querido comprometer com o Movimento, o seu comandante coronel Mendes Batista viria também a convocar os órgãos de informação, neste caso para desfazer boatos que corriam na cidade sobre o posicionamento desta unidade no dia 25 de Abril e o facto de a mesma ter estado encerrada durante alguns dias. A crer nas suas declarações, o comando da unidade teria, ainda no dia 25 e antes do triunfo do movimento militar, não só decidido tomar «posição claramente a favor» deste como informado da mesma «todo o seu pessoal, oficiais, sargentos e praças». Quanto ao segundo facto, a unidade mantivera as suas instalações «em rigorosa prevenção, porque assim havia sido decidido por normas emanadas da própria Junta».(25)
Muito crítico sobre os militares que, no Algarve, na altura devida, se tinham escusado a integrar o Movimento, mas que «a 26 de abril (…) se metamorfosearam miraculosamente em empenhadíssimos e diligentes revolucionários», recebendo «embevecidos, como heróis, as manifestações de júbilo das populações», Rosado Luz afirmaria anos depois:
«(…) Os capitães Glória Alves, de Artilharia, e Filipe Lopes, de Infantaria, foram sempre os nossos indefetíveis homens do Movimento e com a sua corajosa ação cumpriram a missão de tomar a unidade e tomar militarmente as antenas de rádio, televisão e militares da Fóia, sem as quais o Algarve ficava cortado do resto do país (…).»(26)
No CICA 5, agora comandado pelo major Carlos Leal Branco e com o envolvimento alargado, em termos de participação, de oficiais milicianos e sargentos, o dia 26 foi fértil em atividade: contactos com a PSP, Guarda Fiscal, Câmara Municipal e outras entidades oficiais, distribuição de cópias da proclamação do MFA nos concelhos de Lagos e Portimão (iniciada ainda no dia 25) e entrega nos estabelecimentos hoteleiros de panfletos em várias línguas, informando os turistas de que «as fronteiras estavam encerradas e deviam manter-se calmos e abster-se de qualquer ato hostil».(27)
A TOMADA DA PIDE/DGS
Tal como aconteceu com a sua sede em Lisboa, as duas subdelegações da PIDE/DGS no Algarve só foram tomadas e ocupadas depois do triunfo do golpe de Estado, já sob a égide das novas autoridades militares.
Em Faro, as operações, iniciadas ao princípio da noite de 26 de abril, foram conduzidas por uma força do RI 4, comandada pelo major Caniné, com o apoio de efetivos da PSP, tendo-se prolongado pela madrugada fora.
De acordo com o que foi relatado pela imprensa, já depois da meia-noite, a saída do «primeiro “jeep” com um elemento da DGS, escoltado por militares», foi acompanhada por ruidosas manifestações por parte da população, que rodeava o local desde o início da noite. Pouco depois, «um “jeep” militar partiu para a cidade, procurando localizar o agente de transmissões da extinta corporação, o qual foi encontrado e transportado para a sede».
As operações foram acompanhadas pelo 2.º comandante da unidade, tenente-coronel Bernardino Santos, que, in loco, supervisionou o «trabalho de averbamento de todo o espólio daquela Polícia».(28)
Já depois das 3.00, foi formada uma coluna de viaturas militares, nas quais, «sob forte escolta», tanto os ex-agentes da temida polícia política como o material reunido foram transportados para o RI 4. À partida da coluna, «centenas de populares vaiaram os detidos e vitoriaram as Forças Armadas, chegando, por vezes, a romper, no seu entusiasmo, os cordões de proteção».(29)
Ao todo, foram presos um inspetor – o inspetor Paulino, que chefiava esta subdelegação – e cerca de uma dezena de agentes (nove ou dez, as fontes não são unânimes).
Em Portimão, a tomada das instalações da PIDE/DGS foi também acompanhada por grande entusiasmo popular. Neste caso, já na manhã de sábado, dia 27, as operações foram conduzidas por uma força do CICA 5 comandada pelo capitão Glória Alves:
«Chegado ao local, que distava dois quarteirões da casa onde morava, fechei os acessos à vivenda onde funcionava a PIDE e mandei ocupar os terraços dos prédios circundantes, para evitar surpresas. De seguida entrei acompanhado do aspirante miliciano Barbosa, armados, nas instalações e, perguntando, fui ao gabinete do chefe da Delegação, Sr. Infante, que me pareceu atrapalhado, mas ao mesmo tempo aliviado. Disse-lhe ao que vinha, que entregassem o armamento (ele e os agentes antes sob o seu comando), reunissem o pessoal e se preparassem para ficar detidos.»(30)
Mais adiante, este oficial relata:
«Depois, percorri, acompanhado do chefe da Delegação, as instalações daquela polícia, indagando o uso dado a cada dependência. Como, entretanto, o povo se começava a juntar na rua, gritando vivas ao MFA e morte à PIDE, dei ordens ao pessoal para ser rigoroso na segurança dos agentes à nossa guarda.»
No final, o inspetor, que, segundo Glória Alves, «apesar da fraca figura, tinha fama de torcionário», pediu «para levar ele a sua viatura, um Volkswagen»:
«Autorizei e tomei lugar a seu lado, tendo-nos integrado na coluna que regressou a Lagos com o pessoal, material e documentos que conseguimos reunir. Ao deixar o local, pude constatar o assalto do povo ao edifício, transportando para a rua desde grandes vasos de plantas aos tapetes do chão. Depois de anos de opressão, a válvula saltava e o povo manifestava-se.»
Recolhida no Forte do Pau da Bandeira, à guarda do CICA 5, onde também, nos primeiros dias, ficaram detidos os agentes daquela subdelegação, a documentação foi, mais tarde, entregue à Comissão de Extinção da PIDE/DGS.
Em Vila Real de Santo António, área de intervenção do CISMI, de Tavira, a atuação das Forças Armadas foi, em contrapartida, motivo de controvérsia. Apesar de inicialmente presos, os agentes da DGS que prestavam serviço neste posto fronteiriço, seriam, pouco depois, insolitamente recolocados nas suas funções anteriores, alegadamente por os agentes da Guarda Fiscal, que, entretanto, os tinham substituído, «não estarem habilitados a executar tal trabalho».(31)
No total de 25, tanto quanto foi possível apurar pela imprensa, os inspetores e agentes da extinta polícia política, de Faro, Portimão e Vila Real de Santo António, foram, «já na madrugada de dia 30, sob forte escolta, conduzidos em viaturas militares», do RI 4, onde, entretanto, tinham sido reunidos, para o Forte de Peniche, «um dos famigerados presídios que, sob a égide desta polícia, até pouco tempo antes albergara um elevado número de presos políticos».(32)
Objeto de ocupação das suas instalações e de arrolamento do seu material, armamento e documentação foram também, nos dias imediatos ao 25 de Abril, as outras organizações do regime espalhadas pela província: Ação Nacional Popular, Legião Portuguesa, Mocidade Portuguesa e Mocidade Portuguesa Feminina.
Concluída a sua missão, os dois oficiais que, no Algarve, tinham sido o rosto do movimento militar, seguiriam caminhos diferentes.
Ferreira Lopes foi, poucos dias depois, colocado no Comando Territorial do Algarve. Em março de 1975 (pouco depois do nascimento do terceiro filho), foi nomeado adido militar para a área das informações na Embaixada de Madrid. Regressaria, no final do ano, a Faro, aí tendo exercido durante algum tempo funções de chefia no Serviço de Estrangeiros. Nos anos 1990, depois de concluído o Curso de Comando e Estado-Maior, desempenhou durante vários anos funções de chefia em serviços de estudo e informação militar nas áreas do Magrebe, Médio Oriente e, mais tarde, também da Ásia do Sul. Está aposentado desde 2005, com a patente de coronel.
Logo em maio de 1974, nomeado delegado da Junta de Salvação Nacional na Câmara Municipal de Albufeira, Glória Alves seria, por sua vez, pouco depois, mobilizado para a Guiné, como 2.º comandante do respetivo Batalhão de Comandos, aí tendo acompanhado o final da presença portuguesa neste novo país. Em março de 1975, foi, de novo, colocado em Lagos, no Destacamento do RI 4 que, entretanto, aí substituíra o CICA 5.
Durante as eleições para a Assembleia Constituinte, em 1975, e para a Assembleia da República, em 1976, foi o responsável pela distribuição e recolha de votos, bem como pela segurança das mesas eleitorais, nos concelhos de Aljezur, Vila do Bispo, Monchique, Portimão e Lagos. Hoje já aposentado, no posto de coronel, do seu curriculum constam ainda várias participações em missões internacionais de cooperação militar com países de língua oficial portuguesa, como Moçambique (onde, na época colonial, tinha feito duas comissões) e Angola. É coautor do livro oficial sobre o nascimento dos Comandos, na parte respeitante a Moçambique.
Os dois foram agraciados com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade pelo seu contributo para a deposição do regime ditatorial.
NOTAS:
(1) José Castelo Glória Alves, depoimento prestado em 13/9/2021
(2) Filipe Ferreira Lopes, depoimento prestado em 19/5/2022
(3) João Filipe Fontinha, carta endereçada ao autor
(4) Américo Caetano, carta endereçada ao autor
5) Ibidem
(6) Vera Timóteo, carta endereçada ao autor
(7) Otelo Saraiva de Carvalho, Plano Geral de Operações in Almada Contreiras (coordenação) (2017), Operação Viragem Histórica: 25 de Abril de 1974, Lisboa, Edições Colibri
(8) António M. J. Rosado Luz, O Meu 25 de Abril in Almada Contreiras (coordenação) (2017), Operação Viragem Histórica: 25 de Abril de 1974, Lisboa, Edições Colibri
(9) José Castelo Glória Alves, depoimento…
(10) Luís Pedro Cabral, Objetivo: Fóia in Visão História n.º 23, março de 2014
(11) José Castelo Glória Alves, CICA 5 Relatório da atuação em 25ABR74 in Dinis de Almeida (1977) Origem e Evolução do Movimento do Movimento de Capitães, Lisboa, Edições Sociais
(12) António M. J. Rosado Luz, O Meu 25 de Abril …
(13) Luís Pedro Cabral, Objetivo: Fóia …
(14) Ibidem
(15) José Castelo Glória Alves, CICA 5 Relatório …
(16) Luís Pedro Cabral, Objetivo: Fóia …
(17) Ibidem
(18) Ibidem
(19) José Castelo Glória Alves, CICA 5 Relatório …
20) Otelo Saraiva de Carvalho (1977), Alvorada em Abril, Lisboa, Livraria Bertrand
(21) José Castelo Glória Alves, CICA 5 Relatório …
(22) José Castelo Glória Alves, CICA 5 Relatório do comportamento do pessoal militar e civil em 25 de Abril de 1974
(23) José Castelo Glória Alves, depoimento …
(24) Diário de Notícias, 3/5/1974
(25) Diário de Notícias, 1/5/1974; Jornal do Algarve, 4/5/1974
(26) António M. J. Rosado Luz, O Meu 25 de Abril …
(27) José Castelo Glória Alves, CICA 5 Relatório da atuação em 25ABR74
(28) A Capital, 27/4/1974
(29) Ibidem
(30) José Castelo Glória Alves, depoimento…
(31) O Século, 30/4/1974
(32) Diário de Notícias, 1/5/1974
Leia também: A madrugada que eu esperava | O Algarve e o 25 de Abril – 50 Anos | Por Idalécio Soares