Detesto que se vexem homens que tropeçam na queda. Aí está a condenação mediática, a notícia basta para que a nossa avidez por escândalos nos faça sobrevir um imediato alento das entranhas para revisitar o nosso empolgamento na condenação pública do outro. Nos telejornais, na imprensa escrita, como nas redes, não há brisas, mas apressados vendavais de pressa e ardor nos julgamentos.
Parecemos uns super-heróis. Desgraças só atingem os demais. A guerra mais terrível passou a ser a crueldade de se cair em desgraça. Invoco, por isso, a sentença de Chamfort, face à qual, cada um de nós deveria engolir um sapo todas as manhãs para ter a certeza que durante o resto do dia não teria de se haver com outras coisas mais repugnantes.
Admitamos que não faltarão Arrudas cleptómanos, eivados do impulso para furtar algo “incongruente com o caráter”, “incontrolável,” ou “moralmente errado”. Ainda que um sentimento de prazer, gratificação ou alívio, seja vivenciado no momento do furto, os indivíduos descrevem sentimentos de culpa, remorso ou depressão logo após. Se será ou não o esse o transtorno, não o sabemos ainda.
Mas não é a singularidade episódica deste caso insólito das malas que nos deve preocupar. Nos meus medos, não consigo deixar de expandir um suspiro que guardo há muito. Sem desprimor para a presunção de inocência, até que a sua culpabilidade seja provada, não posso deixar de associar o pensamento de certos setores da vida política portuguesa, ao vociferado propósito de limpeza social que, têm como missão, a eliminação de elementos sociais “indesejáveis”, como criminosos, antimoralistas e sem-tetos.
É este pensamento higienista, como vertente da biopolítica, que mete medo. Parece que, aos indivíduos da corrente de pensamento de gente que assim discorre, lhes é conferido o direito de aplicar um ferrete social aos demais cidadãos, ferrando-os como bois e exigindo que apenas a morte lhes apague a marca da propriedade.
E o problema é ser-se taxado de criminoso, de gatuno de malas aviadas, sem capacidade de ressocialização. Entenda-se, por este termo, a possibilidade de readmissão de alguém, após destituição de direitos de cidadania, ou seja, como sujeição que tem por base a aceitação da ordem social a que estamos sujeitos, quando algumas das vezes os condenados são eles próprios as vítimas dessa ordem, devido às necessidades e às injustiças que advém da mesma.
E teríamos justificada menção de retoma dessa dignidade cidadã, no caso de Isaltino Morais.
É sabido, como o tempo da justiça vai escorrendo vagaroso. Por isso, deveremos envelhecer até ao veredito final e, enquanto isso, temos que dar de barato que o arguido por alegado furto qualificado de malas em tapetes aeroportuários, possa estar inocente. Inocência que partiria do princípio da admissão de que os seus olhos iam na corrente das malas, retirando-as na convicção de serem suas, uma vez que os ilustrados da Nação andam sempre com o tempo contado para a azáfama de deputar. Surpreende, todavia, que, depois de indiciado que foi na iniciação à cerimónia das malas, nem uma ruga lhe tenha ensombrado o rosto depois da rusga, nem se tenha abeirado de um pensamento apolíneo, o do lado da razão e do raciocínio lógico, de suspender o mandato.
Sendo, no mínimo, insólito, só podemos compreender pelas elevadas imposições do trabalho de deputado, que não pela luta pela sobrevivência, sugestivo de que pensemos a cena para além do horizonte da utilidade imediata de um deputado. Depois, este evento aeronáutico em terra, também pode prefigurar um facto, de há muito gritante, o de que a classe política ganha tão mal que já não chega para a compra de “camisas da Primark ou lá o que é”.
Ademais, também é compreensível que, num rompante de raiva, não se sinta prescrito, mas apenas “não inscrito”, o que já constitui uma condição de excelente honorabilidade. Não quer desertar da vida de deputado. Ótimo. Haja quem entenda que malas há muitas e que as suas não devem encher os seus dias daquelas tempestades que não dormem, ou de clamores, uivos e rugidos. E o que mais haverá, é gente de igual condição a transportar grandes malas de roupa suja, produzida pela penosidade dos suores parlamentares.
Deputado cândido que se preze obriga-se a ser dotado de uma imaginação infindável, devendo ser um ator perfeito, um herói carismático que saiba contornar as armadilhas da inteligência artificial da polícia, deduzindo-se, segundo V.ª Ex.ª, que ela terá pouca apetência para uso da natural.
E que maior demonstração de solidariedade altruísta poderia ter que a desfiliação do partido para o proteger? Encanta um deputado que saiba afugentar as cobras, aninhadas numa espécie de mística Arca da Aliança. Acredito que este povo, que é o nosso, já tinha saudades de um homem assim, intrépido, de um ídolo de ouro, lesto na fuga de gigantescos pedregulhos.
Que assomo de altruísmo aventureiro. Se as aventuras têm um nome, elas não podem ser apenas o de Indiana Jones.
Está contraditado o Eça, porque, afinal, o que não nos falta, neste país, que supostamente é o nosso, é o engenho, a arte, o ímpeto de contrariar as rotinas de acaso, a política influenciada pela paixão frívola dos interesses menores.
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