O desafio de pôr em confronto o olhar do psicanalista com o do artista plástico é altamente estimulante, mas cedo dá para pensar que ambos conversam num fio de navalha, para se fazerem compreender pelo grande público ou mesmo os não-iniciados.
“Para grandes solidões magníficos espelhos” por Carmo Sousa Lima, Vasco Araújo e João Sousa Monteiro, Documenta, chancela da Sistema Solar, 2013, é uma longa conversa que tem a ver com o ver, onde se interroga se a arte pode ser uma análise do ser humano e alguém responde que a arte diz-nos quem somos nós porque há um sistema de vasos comunicantes entre estas linguagens. A psicanálise trata, a arte espoleta a capacidade de sonhar e a psicanalista Carmo Sousa Lima confessa ao seu interlocutor: “O que me fascina na arte é que ela nos mostra aquilo que a gente é e não conhece. Vocês têm esse bom poder, que pode ser catártico, estruturante, disruptivo, é um ecrã fabuloso para todas as nossas projecções” e ambos dialogam sobre o poder, o invisível, a intriga policiária, um modo como deliberamos a nossa condução individual e colectiva.
Há também um outro nexo comum entre a psicanálise e a arte que tem a ver com a problemática do corpo, a que se pode incorporar a velocidade, o estar bem ou ser doente. São conversas que se espraiam por diferentes dias, retorna-se ao ver e Carmo de Sousa Lima aduz: “Nós só vemos o que podemos, o que reconhecemos, o que queremos ver”. Ela trabalha com os muitos medos que há nos seres humanos que por vezes se projectam sob a forma de alucinações. E o artista plástico explica: “A arte é só a realidade torcida. É como se nós tivéssemos um objecto e, o que os artistas fazem, é somente mostrá-lo de um outro ponto de vista”. Conversar sobre o medo e o que se atravessa no nosso corpo implica falar sobre a solidão e algo que é abrangente à condição humana, a memória. A psicanalista observa: “Estou convencida de que nós não esquecemos rigorosamente nada, as coisas ficam é no corpo de outra maneira. O nosso próprio corpo é uma grande memória”. E psicanalista e artista plástico dissertam sobre a música, a imagem, a encenação, ambos comentam os intervenientes dos diferentes vídeos de Vasco Araújo, e regressa-se à discussão da imagem em movimento, ao poder da fotografia, a conversa escorrega para a doença mental e a psicanalista chama a atenção para o facto de as crianças psicóticas e autistas nunca terem as doenças infantis habituais por exemplo não têm hipotermias, a conversa discorre para a carga de informação sensorial que trazemos à nascença, para a ilusão de que temos um génio, para as figuras internas que se encastram no trabalho do ator, a sua vida privada também se alimenta de os personagens que eles representam.
Lá para o fim destes dias de encontro, o terceiro interveniente, João de Sousa Monteiro procura dar uma explicação para a trama das conversas: “Este livro começa com a ideia de que vamos para toda a parte para nos curarmos. Penso quase exactamente o contrário: vamos para toda a parte para não nos curarmos de nada, para não mudarmos nada de realmente importante em nós. E o artista plástico responde, questionando se os artistas são mensageiros daquilo que somos, introduzem mais elementos na conversa, volta-se ao teatro e ao cinema e parece então que entramos numa grande sala de espelhos e a Carmo Sousa Lima cabe o último comentário: “Qualquer boa obra de arte é sempre um espelho”.
Dir-me-ão que este frente-a-frente é elitista, andam ali engalfinhados nas narrativas de imagens, na descodificação das obras de arte, onde a psicanalista emite pareceres sobre a natureza humana. Ora acontece que o título da obra encerra a substância destes dias de frente-a-frente: para superar a solidão não há nada melhor que estes magníficos espelhos em que as imagens nos fazem verter o entusiasmo ou a rejeição, a adesão ou a indiferença e lá está a profissional de saúde mental para interpretar aonde esses espelhos permitem ver os estados de alma.