A região do Algarve enfrenta um paradoxo gritante. Enquanto a seca ameaça o abastecimento e medidas restritivas são impostas aos consumidores, milhões de metros cúbicos de água potável perdem-se anualmente nas redes de distribuição. Em 2022, mais de 15 milhões de metros cúbicos de água tratada foram desperdiçados – o equivalente para encher seis mil piscinas olímpicas ou suprir quase metade das necessidades das famílias algarvias.
Este cenário não é apenas alarmante; é inaceitável. A culpa recai, em grande parte, sobre as entidades gestoras e autarquias que, por inércia, falta de investimento ou má gestão, têm negligenciado a reabilitação das infraestruturas envelhecidas. Segundo dados da DECO PROTeste, metade dos concelhos algarvios registou perdas elevadas de água, com Lagoa, Lagos, Silves, São Brás de Alportel, Loulé e Castro Marim no topo da lista dos maiores desperdiçadores. Com exceção de Alcoutim, todos os restantes 15 concelhos algarvios ficaram abaixo dos mínimos de recuperação de redes envelhecidas.
É chocante que, em vez de enfrentar este problema estrutural, a solução proposta pelos governantes e reforçada pela ERSAR seja aumentar as tarifas
É chocante que, em vez de enfrentar este problema estrutural, a solução proposta pelos governantes e reforçada pela ERSAR seja aumentar as tarifas para os consumidores a partir de um consumo mínimo de cinco metros cúbicos mensais. Esta medida, além de não ter efeitos estruturais, penaliza injustamente as famílias numerosas e aqueles que já fazem um uso prudente dos recursos hídricos. É inadmissível que os consumidores sejam chamados a pagar pela ineficiência de entidades gestoras que não cumprem o seu dever básico de assegurar uma rede de distribuição eficaz.
Joaquim Poças Martins, secretário-geral do Conselho Nacional da Água, foi esta quinta-feira claro ao afirmar que entidades com perdas de 40% a 50% “não têm legitimidade” para aumentar as tarifas. Reduzir as perdas para níveis aceitáveis não requer necessariamente grandes investimentos financeiros, mas sim vontade política e gestão competente. No entanto, a falta de ação efetiva por parte das entidades gestoras sugere uma preocupante ausência de responsabilidade e transparência.
A situação é ainda mais agravada pela falta de dados sobre a sazonalidade do consumo, crucial numa região onde o turismo exerce enorme pressão sobre os recursos hídricos. Com exceção de Loulé, as entidades gestoras algarvias não forneceram informações ao regulador, dificultando uma análise precisa do impacto do turismo no consumo de água e impedindo a implementação de medidas mais justas e eficazes.
A solução para este problema não pode passar por penalizar o elo mais fraco da cadeia. É urgente que as entidades gestoras assumam a responsabilidade e invistam na reabilitação das redes de distribuição. O Plano Estratégico para o Abastecimento de Água e Gestão de Águas Residuais e Pluviais 2030 (PENSAARP 2030) aponta o caminho, mas sem vontade política e ação concreta, continuará a ser um documento sem impacto real.
Além disso, é fundamental harmonizar as tarifas a nível nacional, reforçando os poderes da ERSAR para garantir preços justos e evitar disparidades que não se justificam. A criatividade tarifária entre concelhos leva a situações absurdas onde um simples copo de água pode custar o dobro apenas porque se atravessou uma fronteira municipal.
Em suma, o Algarve não pode continuar a ser vítima de má gestão e falta de visão estratégica. A água é um recurso vital e escasso, especialmente numa região propensa à seca. É tempo de as entidades gestoras pararem de “atirar água ao mar” e começarem a valorizar cada gota, investindo em infraestruturas eficientes e práticas sustentáveis. Só assim poderemos garantir um futuro onde a água seja um direito assegurado e não um luxo penalizado.
Leia também: A degradação do serviço postal e o impacto no jornalismo | Editorial