“A hecatombe de Gaza insere-se na longa série de hecatombes que devastaram as regiões do Norte de África e do Médio Oriente, suscitando uma compaixão universal de geometria variável – desde o massacre dos arménios da Turquia, em 1915, os curdos gazeados em Halabja, no Iraque, por Saddam Hussein, em 1988, as matanças interconfessionais durante a guerra civil libanesa, entre 1975 e 1990, as carnificinas da década negra da jihad na Argélia durante a década de 1990 e os banhos de sangue no Iémen a partir do verão de 2014, às devastações étnicas no Sudão. A qualificação de genocídio, que na utilização que lhe é dada no Ocidente parecia reservada ao extermínio dos judeus pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial, constitui na atualidade uma questão política considerável.
Aplicada a hecatombe de Gaza, tem como objetivo categorizar a matança causada por Israel como sendo cometida por um intruso ocidental no Médio Oriente e, assim, é especificamente culpável porque se inscreve na linhagem dos crimes da colonização e do imperialismo.”
Holocaustos, por Gilles Kepel, página 116.
Gil Kepel é porventura o politólogo arabista francófono mais conceituado, atenda-se ao seu acervo bibliográfico, traduzido em cerca de vinte línguas. Holocaustos, Israel, Gaza e a guerra contra o Ocidente, Publicações Dom Quixote, 2024, tem como ponto de partida os atos sanguinários de 7 de outubro de 2023, em território israelita, praticados pelos Hamas, e a resposta israelita. O seu ensaio não se escuda dos eventos do ataque do Hamas e da resposta israelita, a sua leitura é da longa duração, a linha do conflito, tem blocos de um lado e do outro, houve outrora a Guerra Fria e no espaço em que a geopolítica e geoestratégia mundiais se alteraram, configurando-se um Norte identificado com o mundo ocidental, e um Sul global, onde se amalgamam a China e a Rússia e outros países que fazem parte dos BRICS, caso do Brasil, Índia, Arábia Saudita e Etiópia, qualquer coisa como 46% da população mundial.
Os acontecimentos de 7 de outubro de 2023 atingiram proporções mais do que dramáticas, foi o mais importante massacre de israelitas desde o fim da Segunda Guerra Mundial
O ensaio tem “o objetivo de colocar em perspetiva de longa duração as efemérides de Israel e de Gaza, e os locais da memória do conflito na geografia regional e na geografia universal. Em quatro capítulos, analisam-se sucessivamente as lógicas do pogrom do Hamas, as contradições de Israel ao invadir e bombardear Gaza, as tensões extremadas do contexto regional em torno do ‘eixo de resistência’ conduzido a partir de Teerão, e a nova guerra mundial contra o Ocidente combatida na frente dos valores morais e na demografia política por alguns, que se exprimem em nome de um Sul global que é mais heterogéneo e conflituoso do que desejariam.”
Os acontecimentos de 7 de outubro de 2023 atingiram proporções mais do que dramáticas, foi o mais importante massacre de israelitas desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Na visão dos fundamentalistas islâmicos, foi um ataque bendito, prende-se com a usurpação sacrilíaca da Palestina por Israel, é uma longa história que Kepel descreve de forma exímia e rigorosa até à atualidade. Por detrás do Hamas está o líder Yahya Sinwar, o palestino que enganou Benjamin Netanyahu, julgava este líder fanático que graças ao apoio do Catar a Faixa de Gaza se manteria calma, apesar daquele caldeirão de mais de 2 milhões de habitantes num espaço tão exíguo.
O Hamas não é uma entidade solúvel, recebe diferentes apoios desde o Irão ao Iémen. Kepel explica-nos quem é Sinwar, como é líder incontestado, e observa que para reconstituir o processo complexo que conduziu ao 7 de outubro, é preciso colocar em perspetiva a história do movimento islamita-palestiniano, apanhado, em primeiro lugar, entre o nacionalismo árabe e o Estado sionista, mais tarde entre o sunismo conservador da península arábica e o xiismo revolucionário iraniano, e, por fim, com a aproximação decisiva a este último realizada pelo seu ramo estabelecido em Gaza, que ele disseca com clareza, documentado como está; passa igualmente em revista o que se alterou com as Primaveras árabes.
As gerações de políticos que governam Israel pouco ou nada têm a ver com as que fundaram o Estado hebraico; o fundamentalismo sionista campeia, não quer reconhecer a Palestina, quer ocupar todos os espaços com colonatos, os supremacistas judeus reivindicam que Israel se torne num Estado teocrático, regido em exclusivo pela lei bíblica e pela anexação da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Netanyahu resiste a todas as pressões para abandonar o poder, sabe que o processo que lhe é movido o levará à cadeia; tal como aconteceu com o antigo Presidente da República e o antigo primeiro-ministro.
O Hamas também aproveitou habilidosamente as dissensões internas e mostrou que a capacidade de Israel em proteger os judeus de forma estrutural era um mito. Kepel expõe um argumento pouco versado à análise do conflito israelo-palestiniano: a demografia dos partidos religiosos, explica claramente quem são estes fundamentalistas sionistas que enformam o racismo em Israel: “A geração de sionistas religiosos que atualmente está junto do topo do poder nasceu na década de 1980 e vive com a obsessão de uma radicalização mais forte do que a dos seus antepassados. Bezalel Smotrich, um advogado de 43 anos, filho de um rabino e colono da Cisjordânia, onde mora numa casa construída ilegalmente, pensa, nem mais nem menos, que os palestinianos devem ir-se embora, serem mortos, ou servir os judeus se permanecerem na Terra Prometida. O seu colega Itamar Ben-Gvir, de 46 anos, morador na colónia ultrarradical de Kiryat Arba, perto de Hebron, militou desde os 14 anos no partido racista e violento Kach, do rabino Kahane, o que lhe valeu ser rejeitado pelo Exército. Deixou-se fotografar a tentar forçar a entrada na mesquita de Al-Aqsa enquanto membro do Knesset, de pistola em punho.”
Para compor o puzzle, Kepel dá-nos a visão do judaísmo norte-americano e articula esta visão com a hostilidade à posição israelita depois do 7 de outubro como se viveu no mundo universitário norte-americano que lançou uma crise inédita na mais destacada das universidades norte-americanas, Harvard. “O conflito entre Israel e o Hamas, ao dividir a universidade mais prestigiosa do mundo, tinha por fim revelado as contradições existentes entre os Estados Unidos, o Estado judaico e o Médio Oriente.”
Neste mundo em que já não há Guerra Fria, há blocos constituídos. Numa tentativa de marginalizar, Trump, os chamados Acordos de Abraão procurou criar uma vasta zona comercial sob a égide dos Estados Unidos, usando como testa de ponte os Emirados Árabes Unidos, o Bahrein, Marrocos e o Sudão, não funcionou, os parceiros como a Arábia Saudita e a Turquia exigem sempre que essa maré de progresso exige logo à partida a salvaguarda dos direitos do povo palestiniano.
Sendo hoje Israel o Estado mais odiado no mundo, ninguém no Ocidente, tirando os EUA, lhes dão beneplácito político (a despeito de se manterem os bons negócios, com armas e tudo), o Sul global, que pretende constituir-se como uma ampla frente para disputar a supremacia aos EUA é, paradoxalmente constituído por regimes iliberais, onde pontifica a ditadura pura.
Um ensaio magistral para um conflito que continua sem fim à vista.
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