O ensaio O homem que via no escuro, A Lisboa de Bruno Candé, por Catarina Reis, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2023, espelha esse dado incompreensível da sociedade portuguesa contemporânea e que tem a ver com os traumas que a guerra colonial deixou num número incerto de antigos combatentes. O assassinato de Bruno Candé, em julho de 2020, não tinha razão plausível para acontecer. O assassino era um homem de 76 anos que viu acidentalmente a quem roubou a vida, podemos falar de crime motivado por ódio racial, mas é o rótulo mais cómodo para continuarmos a deixar o esqueleto dentro do armário.
O retrato de Bruno Candé é de um homem bom, um ator dotado, que descobriu, serôdio, a vocação para o palco, que ultrapassou as vicissitudes de famílias disfuncionais, tomado pela curiosidade e pelo entusiasmo fugiu de qualquer abismo de que a Zona J podia favorecer, foi resiliente, três anos antes de morrer, depois de um grave acidente que sofreu, voltou a pôr-se de pé e a amar a vida. Contribuiu para que a companhia de teatro Casa Conveniente tenha mudado as instalações do Cais de Sodré para o que se teria pensado ser um lugar improvável para fazer teatro, a Zona J.
Catarina Reis conta-nos admiravelmente a história da sua vida, começamos por Cadi Candé Marques, uma muçulmana guineense que se terá embeiçado por um soldado português Olossato, naquela altura lugar fustigado pela presença do PAIGC no santuário do Morés. Cadi, mãe solteira, e com três filhos nos braços, viajou para Portugal, em 1973, veio só com dois filhos, a Santa Casa da Misericórdia apoiou-a, conheceu o trabalho precário, as limpezas, afeiçoou-se por outro português, dessa relação nasceram três filhos, Bruno foi o primeiro, ocuparam uma casa, veio a filha que ficara na Guiné, Olga, que se revelou uma irmã desvelada com os irmãos mais novos. O pai de Bruno acabou na bebedeira, Bruno e a família fixaram-se na Zona J, em Chelas; ao que consta, tinha o Bruno seis meses e esteve para morrer no Hospital D. Estefânia, houve batismo forçado, na falta de padrinho escolheu-se Santo António, o padroeiro de Lisboa teve direito a altar doméstico, mas a figura do santo seguia sempre no bolso do Bruno.
Adorava representar, tornou-se ator na companhia Casa Conveniente, a companhia transferiu-se para a Zona J em 2014. Entrou numa novela, mas o seu sonho era subir aos palcos, estreou-se no Bairro dos Remolares, no Cais do Sodré, a Casa Conveniente manteve-se aqui durante cerca de 20 anos. Teatro não convencional, pronto a novos desafios, chegou a representar nas prisões. Data de um espetáculo da companhia Rifar o meu coração, no Porto, em 2016, a frase em que Bruno sintetizou toda a sua história, uma consigna: “Eu tinha tudo para dar errado, mas sou o Bruno Candé.”
Um dos pontos mais estimulantes deste ensaio tem a ver com a forma como Catarina Reis põe em cena a Zona J e toda a área de Chelas, com os seus 10 bairros, conta-se a história do plano de urbanização de Chelas, os edifícios da Zona J e quem os habita, fala-se da emigração, das tensões culturais, dos pontos de encontro dos diferentes povos, a natureza das convivências, como a Zona J se reciclou em o Bairro do Condado, onde a cultura esteve ausente até há poucos anos. “A revolução começou há cerca de dez: em 2006, criou-se a Biblioteca de Marvila, seguiu-se o projeto cultural Galeria Underdogs, de Vhils (artista português Alexandre Farto), com o propósito de tornar a arte acessível por via de exibição do trabalho de artistas nacionais e internacionais. Surgiu, então, a Fábrica Braço de Prata, espaço que alberga eventos de todo o tipo. Mais recentemente, ali perto, ouvimos falar da chegada Hub Criativo do Beato, uma incubadora de criatividade situada no antigo complexo fabril do Exército. E, claro, estava presente a Casa Conveniente, a par da companhia de teatro Cepa Torta.”
A Casa Conveniente derrubou muros, instituiu uma cultura de proximidade, apareceram artistas no fado, hip-hop, impôs-se a arte urbana, emergiam as gerações já nascidas em Portugal.
E vamos agora aos três tiros mortais que Evaristo Marinho desfechou em Bruno Candé com uma semiautomática Walther PP de calibre 7,65 mm. As gentes espavoridas, desoladas, perplexas, interrogavam-se sobre o móbil do crime, prontamente se aflorou a palavra racismo. Consultando os jornais da época vejo como se passou por cão por vinha vindimada sobre a saúde mental de Evaristo Martinho. Este antigo combatente encontrara uma vez Bruno na dita avenida de Moscavide, houve uma troca azeda de palavras, Evaristo não se escusou a proferir ofensas e a dizer que matara pretos durante a guerra, isto só para sublinhar que o seu crime de ódio vem de longe, está identificado, existem até associações que procuram acolher antigos combatentes com stress de guerra que levam uma vida de inferno e destroem a família, e há mesmo livros que falam de Evaristos identificados, por vezes autênticos farrapos humanos. Tenho para mim que este ator tão esperançoso, que deixou três filhos menores, um punhado de notas magníficas espalhadas pelas gavetas da sua casa, amável, sonhador, teve um dramático encontro com um desses doentes desse ódio recalcado. E é muito tocante o termo desta narrativa em volta de um homem bom destruído por ódio racial:
“Bruno era o tipo de pessoa que jamais esperava gritos de revolta, canções revolucionárias e homenagens em palco. Jamais pensaria que a história colonial da qual a família nasceu e cresceu foi a mesma que o matou. A guerra levou um português até Cadi Candé Marques, encontro que fez nascer Olga, Carla e Fernando; também foi a guerra que conduziu a guineense até Lisboa, à Zona J. A mesma guerra que tornou um homem revoltado e armado que acabaria por trazer a Cadi a pior dor de uma mãe. O que pensara Candé de um homem que ameaça, a plenos pulmões, ter matados ‘pretos’ na guerra, violado mulheres africanas e ter uma arma em casa pronta a matar outros?
Creio saber o suficiente para adivinhar que Bruno viu neste homem uma amargura curável, travada antes do primeiro tiro, com uma cerveja e uma conversa à mesa.”
De leitura obrigatória para todos aqueles que queiram investigar os porquês de uma guerra colonial onde ainda decorre um sofrimento vivo a que a sociedade se alheia, tratando-o como um mal menor, como uma raiva que gradualmente se extinguirá quando o último antigo combatente fechar os olhos.