Dá-nos conta a lusitana imprensa — esse espelho onde o país se contempla com vaidade e ligeiro estrabismo — que um bebé nasceu na receção de um hospital, que um navio da Marinha disparou uma munição inerte contra um barco vizinho e que um comboio Intercidades perdeu seis carruagens algures entre Lisboa e Faro. Três episódios, três averiguações. Portugal, esse país adiado, parece ter feito da investigação preliminar o seu verdadeiro motor de progresso.
A criança, que ousou nascer antes de a burocracia estar pronta, foi recebida entre cadeiras de plástico e olhares perplexos. A ministra da Saúde, com a gravidade de quem anuncia uma reforma que não virá, pediu averiguações. Porque em Portugal, o nascimento é um ato administrativo e o milagre da vida deve aguardar pela senha.

Jurista
Somos um país que dispara sem querer, que perde carruagens sem saber, que recebe bebés onde calha — mas que, ainda assim, chega ao destino
O navio Viana do Castelo, por sua vez, protagonizou um momento de poesia bélica: um “disparo inopinado de munição inerte”. O projétil, como que guiado por um espírito sebastianista, encontrou o casco do Isabel C, que ali se encontrava, como tantos portugueses, apenas a cumprir o seu destino de estar onde lhe mandam. A Marinha, com a fleuma de quem tropeça em cerimónia oficial, abriu um processo. E nós, povo de brandos costumes, sorrimos e seguimos.
Já o comboio Intercidades, ao perder seis carruagens, parece ter encenado uma metáfora involuntária: Portugal, esse país que se fragmenta em partes que não se entendem, que se soltam, que seguem destinos divergentes. As carruagens que ficaram para trás são, talvez, o símbolo de regiões esquecidas, de uma política que não encaixa, de uma promessa que se desprende.
E no meio disto tudo, a averiguação. Sempre a averiguação. Averiguamos nascimentos, disparos, descarrilamentos e, quem sabe, amanhã averiguaremos o motivo pelo qual o sol se pôs demasiado cedo ou o porquê de um cidadão ter ousado pensar fora da caixa. Averiguamos com zelo, com método, com a lentidão própria de quem não tem pressa em resolver, mas grande vocação para adiar.
Portugal, esse país onde tudo acontece com ligeiro atraso e muita dignidade, continua a ser o mesmo: lírico na tragédia, elegante no erro, sublime na desordem. Somos um país que dispara sem querer, que perde carruagens sem saber, que recebe bebés onde calha — mas que, ainda assim, chega ao destino. Com atraso, com remendos, com comunicados oficiais. Mas chega.
E se alguém perguntar o que se passa, respondemos com a serenidade de quem já viu tudo: “Está em averiguação.”
PS – Lê-se que a VMER do Hospital de Santa Maria falhou o socorro ao acidente no Elevador da Glória, em Lisboa, porque estava trancada por dentro — e a chave suplente repousava em Loulé.
Ora, imaginemos um burlão, disfarçado de burca, decidido a roubar a VMER. Teria de atravessar o país, solicitar a chave com selo de autorização, preencher um requerimento em triplicado e aguardar deferimento.
O que, convenhamos, daria tempo mais que suficiente para as autoridades atuarem. E talvez até para o burlão desistir por exaustão burocrática.
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