Desertar, de Mathias Enard, um dos mais reputados escritores franceses da actualidade, é uma das grandes novidades desta rentrée editorial, publicado pela Dom Quixote com tradução de Joana Cabral. Um livro narrado a dois tempos e duas vozes.
Desertar alterna a história de um soldado desconhecido – que, à margem de um campo de batalha indeterminado, tenta fugir da sua própria violência, do seu próprio terror – com a de um casal que, apesar de uma Alemanha dividida, se apaixonou e teve uma filha que relembra a sua história.
A história do soldado oscila entre uma voz narrativa na terceira pessoa e uma segunda pessoa, como se o narrador se dirigisse ao soldado, ou como se o soldado falasse consigo próprio – movido pela solidão e pela confusão dos dias em que se move. Não obstante a prosa em torno da sua narrativa é mais lírica, com um ritmo sincopado.
Por outro lado, a outra história é contada na primeira pessoa por uma mulher, perto dos seus setenta anos, que tenta reconstruir a memória familiar, ao procurar reconstituir, com base em cartas e outros documentos, os passos da mãe, mas especialmente os passos dados pelo seu pai, que num momento que coincidiu com a ascensão do nazismo desapareceu subitamente. O seu pai, que foi um conhecido matemático da Alemanha Oriental, embora a obra que o distingue seja mais literária do que matemática:
“As Conjeturas eram um mistério matemático e literário absoluto, que era ao mesmo tempo do foro da poesia e da música secreta da matemática (…), um concentrado tal de dor e de solidão (…) que até a matemática se transformava numa matéria gélida como as estrelas, lisa e dura” (p. 169).
Cabe ao leitor descobrir como encaixam as duas narrativas paralelas – como linhas desenhadas por duas esferográficas presas por um elástico que nunca se tocam (?).
As duas narrativas estabelecem um diálogo entre si na medida em que atravessam diferentes guerras e histórias de amor (ou da sua possibilidade), e reevocam ainda o 11 de Setembro.
Mathias Enard nasceu em 1972, estudou persa e árabe, e viveu largos períodos no Médio Oriente. É professor de árabe na Universidade de Barcelona, onde vive. Autor de vários romances (alguns ainda por traduzir entre nós): La perfection du tir (2003; Prémio dos Cinco Continentes da Francofonia 2004), Remonter l’Orénoque (2005), Zona (2008; prémios Décembre 2008 e Livre Inter 2009, entre outros), Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes (2010; Prémio Goncourt des Lycéens 2010 e Prémio do Livro em Poitou-Charentes 2011),Rue des voleurs (2012; finalista do Prémio Goncourt e vencedor do Prémio Lista Goncourt / A Escolha do Oriente 2012, entre outros), Bússola (2015; Prémio Goncourt 2015 e Prémio Lista Goncourt / A Escolha da Suíça 2015), Le Banquet annuel de la confrérie des fossoyeurs (2020) e Desertar (2023).
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