As eleições legislativas de 18 de maio de 2025 aproximam-se com a mesma imprevisibilidade de uma maré viva. No horizonte político português, muitos olhos estão postos no Chega, o partido liderado por André Ventura que irrompeu no sistema com a fúria de uma vaga inesperada. A grande questão que se coloca – quase um refrão nos mercados e cafés algarvios – é se esta força populista de direita terá mais ou menos votos do que nas legislativas de 2024, quando então surpreendeu ao reforçar-se como terceira força parlamentar com cerca de 18% do eleitorado e 50 deputados eleitos. Resta saber se atingirá agora a preia-mar ou se começará a vazar.
Para encontrar respostas, convém recuar um pouco. Em 2022, o Chega obteve 7% dos votos – um resultado modesto em termos absolutos, mas suficiente para abalar o xadrez político tradicional, ao quadruplicar a sua representação parlamentar e emergir como o terceiro maior partido. Portugal, que durante a última década parecera imune à vaga populista que varreu outros países europeus, viu então nascer a sua própria direita anti-sistema. André Ventura, até aí um deputado único e ‘barulhento’, ganhava companhia na Assembleia da República. Muitos observadores perguntavam se esse crescimento era um epifenómeno passageiro, fruto da indignação de alguns milhares de eleitores, ou o início de algo mais profundo. A resposta chegou dois anos depois, de forma estrondosa.
Nas legislativas antecipadas de 2024, convocadas após a queda inesperada do governo de António Costa, o Chega provou que não era fogo-fátuo, mas sim um incêndio político de grande monta. Com um discurso inflamado contra “o sistema” e capitalizando escândalos que minaram a confiança nos partidos tradicionais, Ventura e o Chega saltaram para 18,1% dos votos, elegendo 50 deputados. Foi uma ascensão sem precedentes na democracia portuguesa, quadruplicando novamente a sua representação parlamentar e estabelecendo um recorde histórico: pela primeira vez em mais de três décadas, um partido fora do duopólio PS-PSD foi o mais votado num círculo eleitoral. Esse círculo foi precisamente Faro, no Algarve, onde o Chega conquistou 27% dos votos e 3 deputados, suplantando tanto o PS como a coligação PSD/CDS/PPM. Seis dos concelhos algarvios – incluindo Olhão – pintaram-se então de branco e azul (as cores do Chega) na noite eleitoral. “Acima de tudo, acho que é um grito de revolta das populações, que acham que algo precisa de mudar”, resumiu um comerciante num mercado de Olhão à Rádio Renascença ao ver a bandeira do Chega erguida entre as bancas de peixe. Não era apenas no Algarve: em Elvas, no Alto Alentejo, o Chega chegou a 36,5%, outro sintoma de protesto num país habituado a alternâncias suaves. A mensagem era clara – milhares de portugueses, de Norte a Sul, estavam dispostos a virar a mesa. Ventura, exultante, apresentou o feito como prova de que o Chega viera para ficar e talvez para governar. Porém, a euforia de 2024 deu lugar a um novo impasse: sem maioria absoluta de nenhuma força, o país entrou numa complexa dança de alianças falhadas.
O pós-eleições de 2024 confirmou tanto a força como os limites do Chega. Luís Montenegro, líder do PSD e cabeça da coligação de direita “AD” (Aliança Democrática), recusou liminarmente qualquer coligação com Ventura – mantendo o famoso princípio do “nem com uma colher de chá”. Mesmo tendo vencido a eleição por margem mínima, Montenegro preferiu formar um governo minoritário sustentado apenas pelo PSD e CDS, deixando o Chega de fora. A resposta de Ventura não se fez esperar: avisou que o Chega derrubaria o orçamento de Estado se continuasse excluído do poder. Cumprindo a ameaça, o partido votou contra, e a inviabilidade parlamentar do executivo levou Marcelo Rebelo de Sousa a marcar novas eleições para maio de 2025. É neste clima tenso – quase de duelo congelado entre a direita tradicional e a direita radical – que se desenha o novo ato eleitoral. E a pergunta volta: até onde irá o Chega desta vez?

As sondagens recentes oferecem algumas pistas sólidas. Diversos estudos de opinião apontam o Chega firme na terceira posição, embora ligeiramente abaixo da marca alcançada em 2024. Por exemplo, uma sondagem Pitagórica divulgada no início de abril atribuiu ao Chega cerca de 14,9% das intenções de voto  – valor praticamente estável face ao mês anterior, mas abaixo dos 18% obtidos no ano passado. Outra sondagem, da Consulmark2 para o Nascer do Sol e Euronews, publicada a 24 de abril, reforça este retrato: 15,2% para o Chega, com a AD (PSD/CDS) a liderar com 34,1% e o PS em segundo com 27,1% . Estes números sugerem que o Chega deverá crescer bastante em relação a 2022, possivelmente dobrando a percentagem de votos de então, mas ficará aquém do pico de 2024. Em suma, tudo indica que Ventura terá mais votos do que em 2022, consolidando as conquistas dos últimos anos, embora talvez sem repetir o feito extraordinário de há um ano.
Naturalmente, há cenários em aberto. No cenário mais otimista para Ventura, o Chega poderia recuperar parte do fôlego de 2024 nos dias finais de campanha e aproximar-se de novo dos 18%. A campanha oficial, iniciada com Ventura a pedir “uma oportunidade” de poder na Guarda, tem procurado capitalizar a ideia de que só uma “mudança de verdade” (slogan recorrente do partido) pode responder ao tal grito de revolta do país profundo. Se algum acontecimento de última hora abalar os eleitores indecisos – um escândalo de corrupção, um debate bem conseguido de Ventura ou um erro crasso dos adversários – o Chega poderia atrair mais alguns pontos percentuais de um eleitorado volátil e zangado. Porém, pesam contra esta hipótese alguns travões: nas últimas semanas, o partido enfrentou casos embaraçosos que mancharam a sua imagem de paladino anti-corrupção. Um deputado apanhado em flagrante a roubar malas de viagem nos aeroportos de Lisboa e Ponta Delgada (para depois vender pertences no Vinted) foi apenas o mais caricato de vários escândalos internos que têm afetado o Chega. Esses episódios fornecem munição aos críticos e lembram parte dos eleitores das fragilidades do partido, podendo limitar novos ganhos. Some-se a isso o facto de o Chega já não ser uma novidade fresca – após um ano de intensa exposição mediática e parlamentar, é natural que haja algum desgaste ou desencanto entre quem depositou um voto de protesto em 2024 esperando mudanças rápidas.
No cenário mais pessimista para o Chega, uma parte dos seus eleitores de 2024 poderia decidir “votar útil” na coligação de Montenegro, temendo que dividir a direita acabe por favorecer a esquerda. Se a AD continuar a aparecer destacada na liderança das sondagens, com hipótese real de vitória, Ventura arrisca perder o voto daqueles que, embora alinhados com as ideias do Chega, preferem garantir que o PS não volta ao poder. Há sinais ténues deste efeito: análises diárias têm mostrado oscilações ligeiras, com o Chega e a Iniciativa Liberal a ceder terreno de forma intermitente em benefício do PSD/CDS, ao mesmo tempo que pequenos partidos como Livre ou BE recuperam fôlego à esquerda. Ainda assim, mesmo neste cenário de refluxo, dificilmente o Chega desceria abaixo dos resultados de 2022 – a base de apoio consolidada nestes anos recentes parece demasiado larga para um colapso tão acentuado. Convém recordar que mais de um milhão de portugueses votaram Chega em 2024; seria necessária uma debandada excecional para o partido voltar à casa das poucas centenas de milhar de 2022.
O desfecho mais plausível, portanto, situa-se num meio-termo: o Chega deverá manter-se como terceira força, com uma votação na ordem dos dois dígitos médios (entre 12% e 16%), reforçando o seu peso parlamentar face a 2022, mas abaixo do patamar de 2024. Isso significa que André Ventura continuará a ser um ator político incontornável, mas talvez sem poder clamar vitória retumbante. Um resultado de, digamos, 15%, será ambivalente: por um lado, confirma o Chega como uma força robusta e longeva – não um meteoro passageiro –; por outro, frustra a ambição de ultrapassar a barreira psicológica dos 20% que transformaria Ventura, esse sim, num verdadeiro “kingmaker” decisivo. Recorde-se que em 2024 muitos já o viam assim, rotulando-o de fiel da balança; no entanto, a sua influência foi mais negativa (vetar orçamentos) do que positiva (participar no governo) dada a resistência dos restantes partidos a se aliarem a ele.
E aqui entramos na questão das alianças parlamentares e governabilidade – o grande elefante na sala desta eleição. A matemática pós-18 de maio poderá apresentar um Parlamento novamente sem maiorias absolutas claras. Todas as sondagens apontam para uma maioria de direita em termos agregados, somando AD, Chega e IL. A própria sondagem da Euronews indicava que AD+IL poderiam somar 42,4%, o que, se traduzido em mandatos, fica muito próximo de uma maioria absoluta conjunta. Isso significa que, se Montenegro quisesse e Ventura cedesse, uma solução de governo de direita alargada estaria matematicamente ao alcance. Contudo, a política não se resume à aritmética eleitoral. Até agora, Montenegro tem mantido o “não é não” em relação a acordos com o Chega, recusando legitimar um partido que considera radical e pouco confiável. E os eleitores parecem apoiar esta cautela: 66,8% dos portugueses dizem que a AD não deve aliar-se ao Chega. Esta maioria clara da opinião pública contra um ‘abraço’ PSD-Chega dá cobertura a Montenegro para evitar essa associação, pelo menos formalmente. Por outras palavras, mesmo que aritmética e politicamente Ventura tenha votos “a mais” para serem ignorados, pode continuar a ser mantido à porta do poder.
O mais provável, portanto, é que mesmo com um Chega reforçado em votos e deputados, o cenário pós-eleitoral retome o impasse anterior: ou a AD governará em minoria (talvez desta vez coligada oficialmente com a Iniciativa Liberal para somar forças), ou tentará um acordo parlamentar limitado com Ventura – por exemplo, negociando apoios pontuais em troco de medidas políticas específicas – sem integrar o Chega no governo. Ventura, por seu lado, já deu a entender que não aceitará ser um parceiro mudo: exigirá influência real ou volta à trincheira da oposição combativa. Não surpreenderá se, na noite eleitoral, o líder do Chega reclamar um mandato dos seus eleitores para “mudar a política” e condicionar o próximo executivo, usando como trunfo o seu bloco parlamentar ampliado. A estabilidade governativa poderá assim ficar, mais uma vez, refém da relação tensa entre PSD e Chega. A ironia é notável: quanto mais votos tiver o Chega, mais difícil se torna governar sem ele – mas incluí-lo pode ser veneno político para potenciais aliados de centro-direita.
Importa ainda olhar para o impacto regional desta dinâmica, sobretudo no Algarve. A vitória inédita do Chega no círculo de Faro em 2024 ecoou como um sismo político no sul do país. Tradicionalmente, o Algarve oscilava entre o PS (que dominou a região nas legislativas de 2015 e 2019) e o PSD; sentir o pulso algarvio tornar-se o mais radical do país foi sintomático de problemas locais profundos. Analistas apontaram a crise de habitação no Algarve – onde a pressão turística e imobiliária expulsa residentes dos centros urbanos e encarece rendas – como um fator-chave para esta reviravolta. Acrescem queixas antigas: a sobrecarga do sistema de saúde na região, a falta de transportes públicos e de investimento em infraestruturas além do setor do turismo, e um sentimento difuso de que “Lisboa nos esquece” quando se trata de distribuir recursos. Ventura soube explorar esse caldo de insatisfação, apresentando-se quase como um tribuno dos esquecidos algarvios, prometendo “dar voz ao sul” contra as elites de Lisboa. Em 2025, a grande interrogação local é se o Algarve manterá este alinhamento protestário. Repetirá o Chega a façanha de ser o mais votado no distrito? Os seus adversários certamente mobilizaram esforços para reconquistar terreno: o PS aposta em caras conhecidas da região e numa mensagem de humildade – reconheceram publicamente que “os algarvios não têm tido resposta do poder central em matérias fundamentais” – e o PSD tenta capitalizar o efeito Montenegro, que como primeiro-ministro (ainda que de transição) distribuiu atenções pelo país. Ainda assim, há no ar a sensação de que muitos eleitores algarvios vão novamente julgar quem melhor encarna a promessa de mudança real. Se o Chega conseguir segurar a frustração coletiva como seu estandarte, poderá manter um resultado alto no Algarve, ainda que talvez não tão ‘chocante’ quanto o de 2024. Por outro lado, se a participação aumentar e diluir o voto de protesto, ou se a “novidade” Chega arrefeceu entretanto, PSD e PS podem recuperar algum fôlego nos concelhos onde foram atropelados. Em qualquer caso, o que já ninguém nega é que o Algarve se tornou um barómetro importante do humor nacional – um indicador de tendências que ultrapassam o postal ilustrado de sol e praia, revelando antes as inquietações socioeconómicas de Portugal.
Finalmente, examinemos as tendências eleitorais gerais que enquadram estas expectativas sobre o Chega. A nível nacional, observa-se uma viragem à direita do eleitorado desde 2022, após longos anos de governação socialista. Primeiro foi a vitória tangencial da AD em 2024; agora, todas as sondagens convergem num cenário em que a soma das direitas supera claramente a das esquerdas. O Chega surfou essa onda direitista, mas também a estimulou – ao trazer para o debate temas como a criminalidade, corrupção, imigração e um discurso punitivo que pressionou o PSD a endurecer o tom em certas matérias. Contudo, há indícios de estabilização: a subida do Chega não tem continuado em flecha, parecendo antes aproximar-se de um plateau. Poderíamos estar a assistir a um fenómeno de “normalização controlada”: o Chega fixa-se num patamar de 10-15% de eleitorado fiel, suficiente para influenciar, mas insuficiente para dominar. É um patamar semelhante ao de outros partidos nacional-populistas na Europa Ocidental (recorde-se o caso do Front National de Jean-Marie Le Pen nos anos 90 em França, que durante muito tempo rondou os 15%). A grande questão para o futuro será saber se o Chega consegue romper esse teto de vidro – como fizeram mais recentemente outras formações (por exemplo, os seus congéneres em Itália ou na Suécia, que chegaram ao governo) – ou se ficará confinado a ser um partido de protesto perene, importante mas subalterno.
A maré do Chega: refluxo ou enchente?
Em conclusão, as expectativas eleitorais do Chega para 18 de maio apontam para um crescimento em relação a 2022, possivelmente significativo, mas não revolucionário ao nível do que foi visto em 2024. Terá mais votos do que teve há três anos – provavelmente o dobro – e confirmará o seu lugar de terceiro partido português, o que por si só já é notável. Mas tudo indica que não ultrapassará o recorde obtido no ano passado, ficando ligeiramente aquém dessa marca de água. Se assim for, Ventura enfrentará uma espécie de vitória agridoce: reforçado, porém não o suficiente para impor os seus termos ao futuro governo. Ainda assim, num tom sério e quase analítico, vale lembrar que nenhuma outra força política, desde os idos do PRD nos anos 1980, conseguiu canalizar tão eficazmente a impaciência e o descontentamento de parcelas tão amplas da população. O Chega de 2025 já não é um outsider absoluto; é um paradoxo ambulante – simultaneamente dentro e fora do sistema, cortejado e repudiado, indispensável mas indesejável. Essa condição reflete, em última instância, as tensões da própria sociedade portuguesa: entre a ânsia de mudança e o medo dos remédios amargos, entre a saturação com os antigos males e a relutância em abraçar o incógnito. A crónica destas eleições escreve-se, assim, num equilíbrio instável. Resta saber se, no dia 18, a maré política ficará em meia-água ou se haverá um novo maré cheia de votos para Ventura – e que consequências trará essa maré, alta ou baixa, para o rumo do país nos próximos anos. Uma coisa é certa: seja qual for o nível da enxurrada de votos do Chega, o panorama político português já não voltará tão cedo à calmaria de antes. A onda populista veio para ficar, ainda que o seu auge possa já ter passado. E no rescaldo das urnas, Portugal olhar-se-á ao espelho para encarar a sociedade que, em liberdade, soube expressar nas urnas – quiçá com surpresa, quiçá com apreensão – aquilo que realmente quer e, sobretudo, aquilo que já não quer.
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