Talvez seja esta, a forma mais leal de vos desassossegar. Escrevo-vos numa tarde solarenga de Inverno no início deste ano redondo, algures entre muros, entre o barulho das folhas e dos pássaros, neste pedaço de paraíso perdido, onde tanto se lutou em nome do Deus que se venerava, para simplesmente se conquistar terra e água. Num exercício inicial de retórica, o que seria deste pequeno jardim, já descuidado pela minha falta de tempo e onde agora me sento a olhar para o que resta das minhas rosas vermelhas, se não tivéssemos água? O que de mim seria sem o poder tratar, nos dias em que a vida, e aqueles com quem a partilho, insistem em não me oferecer flores. O tempo encarrega-se de nos mostrar o que é mais importante, mas não a todos da mesma forma.
Muitos apegos à água se discutem, supostamente debaixo de um chapéu único, inequívoco e universal – O Direito à Água. Os nossos direitos para isto, os direitos dos outros para aquilo, ou simplesmente os outros que não têm direitos. Estranho significado de universal.
Aprendi a recuar, a vida obrigou-me a ter coragem para me afastar, a olhar de longe. O que vejo é um puzzle com algumas peças trocadas e com espaços vazios, não lhe consigo perceber o sentido.
Que estranho caminho se tem percorrido, com tantos instrumentos científicos e tecnologia de precisão, manipulamos genes doentes e empurramos a morte, damos vida precoce ao recém-nascido…tudo em prol da vida. Mas usamos essa vida para construir muros, que separam o bem do mal, o rico do pobre, o sábio do ignorante. Haverá um muro desses a separar a seca da abundância de água? Será esse o papel da barragem no leito do rio? O papel do muro. Que direito terá o rio de contornar os obstáculos para atingir os seus objetivos (como escreveu Lao-Tsé), e perder água para o mar? Não é suposto esta água ser usada em economias, para não haver fome nem doença? Serão, por exemplo, a educação e a solidariedade, práticas de regadio?
Nas últimas semanas, em roteiro por várias cidades algarvias, tenho ouvido preocupações e angústias, mais ou menos genuínas, sobre a falta de água tão temida por todos. Dei por mim, a regressar à minha infância de neta de agricultor… Há quase cinquenta anos, quando éramos metade dos que somos hoje, e eu era uma criança privilegiada, por vários motivos, um dos quais era ter água quente na torneira para tomar banho antes de ir para a escola, nas manhãs geladas de inverno. Nesses tempos, aos sábados de manhã, pegávamos nas bicicletas e no pastor alemão, e atrás do meu pai, que a seguir ao cão era o mais entusiasmado do grupo, procurávamos tocas de raposa nas bouças do meu avô. Nunca saberei se o meu pai teria consciência da importância que estes momentos, entre fetos e tojos, entre gargalhadas e zangas com o meu mano, viriam a ter, nas escolhas e no rumo que a minha vida tomou. Não há imagem que me inspire mais paz, do que a daqueles raios de sol entre as árvores, os carreiros de ervas a molharem-nos as botas, o cheiro a caruma e a eucalipto, ou as nossas lutas com bugalhos, que nem sempre acabavam bem! A Natureza representa tanto, que ainda hoje não cabe dentro de mim… procuro sempre mais espaço para ela. Nos últimos tempos da minha carreira profissional, tenho tentado implementar nas cidades, Soluções Baseadas na Natureza. Estudando-as em detalhe, tentando perceber como nos podem ajudar a enfrentar as alterações climáticas, nesta zona Mediterrânica, e a atingir a neutralidade carbónica. Sempre centrada nas necessidades das pessoas, na criação de cidades inclusivas, e na eficiência do uso da água… recorrendo aos tais instrumentos científicos e tecnológicos. Para termos a Natureza nas cidades precisamos de água, reservando-a quando ela nos chega de origens diversas e numa lógica de fit for purpose… conscientes de que, usando as estratégias da Natureza que funcionam há milhões de anos, manteremos a água connosco.
Nunca houve tanta informação sobre água, e tão pouco conhecimento sobre a sua gestão sustentável. Não devemos esquecer que, para além da sua importância enquanto fator de desenvolvimento económico, a água é o suporte da vida, e, portanto, nós teremos de ir por onde ela for!
Havemos de falar mais sobre isto.
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