Um funcionário de uma empresa em Khanty-Mansiysk, na Rússia, recebeu por engano o equivalente ao salário de 34 colegas e, segundo a imprensa internacional, recusou devolver o valor. O caso, que já chegou aos tribunais, tornou-se um dos episódios laborais mais insólitos do ano. De acordo com relatos da imprensa russa e internacional, o trabalhador, Vladimir Rychagov, terá recebido mais de 7,1 milhões de rublos, cerca de 80.000€, quando esperava apenas cerca de 45 mil rublos (pouco mais de 500 euros) referentes a férias pagas.
O montante foi transferido no início de janeiro de 2025, juntamente com o pagamento das férias. A empresa só percebeu o erro depois de verificar que os salários destinados a 34 trabalhadores de outra sucursal tinham sido debitados para um único beneficiário. A partir daí começaram as tentativas de contacto, que não correram como previsto.
Segundo vários meios de comunicação, a falha ocorreu no sistema interno de processamento de salários, que encaminhou inadvertidamente os vencimentos de 34 trabalhadores para a conta de Rychagov. O funcionário tinha direito a receber apenas uma pequena verba de férias, mas acabou por se deparar com um valor muito superior ao habitual, situação que levantou de imediato suspeitas dentro da empresa.
A partir do momento em que se apercebeu da transferência, a companhia enviou diversos avisos ao funcionário para regularizar a situação. No entanto, de acordo com os relatos russos, o trabalhador recusou devolver o dinheiro, deixou de responder aos contactos, mudou o número de telefone, comprou um carro e mudou‑se com a família para Khabarovsk, no extremo leste da Rússia. Este afastamento levou a empresa a avançar com uma ação em tribunal e a pedir o congelamento das contas bancárias do trabalhador.
O que diz a lei russa nestas situações
Na Rússia, o caso foi tratado sobretudo à luz do Código Civil, como uma situação de “enriquecimento sem causa”. Os tribunais de primeira instância e de recurso concluíram que os mais de 7 milhões de rublos tinham sido transferidos por erro técnico e não constituíam salário devido, pelo que Rychagov é obrigado a devolver a totalidade do montante, ainda que já o tenha gasto. A empresa já dispõe de uma decisão favorável e o processo de execução levou ao congelamento das contas do trabalhador.
No plano penal, o percurso foi diferente. Rychagov chegou a ser acusado de conluio com um contabilista para desviar o dinheiro, mas a investigação não encontrou provas suficientes e o processo criminal foi arquivado. Neste momento, não existe qualquer acusação penal ativa contra o trabalhador — o litígio centra-se apenas na devolução do dinheiro.
Ainda assim, juristas citados na imprensa russa sublinham que, em casos de transferências erradas, a regra é clara: quem recebe dinheiro que sabe não lhe ser devido deve devolvê‑lo, sob pena de enfrentar ações judiciais para restituição. Foi isso que aconteceu neste caso, em que a empresa continua a usar todos os meios legais para recuperar a quantia.
Um caso que chamou a atenção internacional
O episódio rapidamente transpôs fronteiras e tornou‑se notícia em vários países. Para muitos comentadores, este é um exemplo extremo de como uma falha informática pode desencadear uma sucessão de conflitos legais e pessoais. O processo continua agora nas instâncias superiores da Justiça russa, depois de Rychagov ter recorrido para o Supremo Tribunal, que irá decidir se a decisão de devolução se mantém ou não.
E em Portugal, o que aconteceria numa situação semelhante?
No ordenamento jurídico português, um trabalhador que recebesse um valor indevido devido a erro da entidade empregadora teria, em regra, de o devolver, mesmo que já o tivesse utilizado. O Código Civil prevê a obrigação de restituir aquilo que for recebido sem causa justificativa, enquadrando estes casos no instituto do enriquecimento sem causa, incluindo o que for indevidamente recebido por erro no pagamento.
A jurisprudência portuguesa tem entendido de forma consistente que, detetado o erro, a entidade patronal pode exigir a restituição das quantias pagas a mais. O facto de o trabalhador saber que o valor não lhe era devido afasta qualquer alegação de boa‑fé, embora a obrigação de restituir possa existir mesmo sem essa consciência.
Além disso, se o trabalhador se recusasse a devolver o valor e, por exemplo, tentasse ocultar-se ou dissipar o dinheiro, o comportamento poderia, em certos casos, ser enquadrado no crime de apropriação ilegítima em caso de acessão ou de coisa achada, previsto no artigo 209.º do Código Penal, punível com pena de prisão até um ano ou com pena de multa.
Na prática, em Portugal a empresa poderia recorrer de imediato aos tribunais cíveis para reaver o montante pago por erro e, em situações mais graves, apresentar queixa-crime, deixando ao Ministério Público a avaliação de eventual responsabilidade penal.
















