Os “Fu” ao contrário, pintados em caligrafia chinesa, a tinta preta e em papel encarnado vivo, como manda a tradição, começam a ser pendurados nas portas, para trazer bom agoiro e abundância para o ano vindouro. Mas o Ano Novo Chinês já não é o que era. Parece-me até que, desde o malfadado Ano do Rato, nem os jiaozi parecem ter o mesmo sabor. Pode ser que seja impressão minha. Porque afinal, seis anos de China e dois de pandemia mudam a gente, ai se mudam! Mas também a azáfama parece não ser a mesma. E olhem que a azáfama do Ano Novo Chinês é diferente. É uma azáfama calorosa, é a corrida aos bilhetes de comboio que esgotam num piscar de olhos, é o abraço do regresso a casa e da reunião anual com a família, o que, durante o ano, tremendamente ocupados nas grandes metrópoles, parece ser missão impossível. Mas desde 2020, tudo parece ter, indelevelmente, mudado. Como se alterassem o ADN do Ano Novo Chinês, ou quiçá o ADN do mundo, entendem?
A viver na China durante estes mais de dois anos de pandemia, posso dizer, todavia, que escapei quase incólume ao caos em que o mundo mergulhou. As medidas rigorosas e atempadas tomadas pelo governo chinês, a obediência do povo chinês às instruções superiores, fronteiras encerradas e a política da “Tolerância Zero” parecem ter surtido efeitos visíveis no controlo da pandemia no país. A observar o efeito yo-yo, uma quase inércia nas medidas tomadas pelos governos diversas partes do mundo, a frustração e o debate aceso sobre o que é ou não a liberdade em tempos de pandemia, não posso deixar de me sentir grata por escapar praticamente ilesa aos efeitos da pandemia e poder viver o meu dia-a-dia de forma quase normal. E enquanto muitos países se têm mantido ocupados a discutir quando a curva irá, eventualmente, achatar-se, Pequim parece muito claro nos seus intentos de eliminar completamente a curva.
A China encontra-se agora a fazer os últimos preparativos para receber o Ano do Tigre e, com isso, a pouco tempo de dar início aos Jogos Olímpicos de Inverno, inicia-se aquela que é conhecida como a maior migração de pessoas no planeta, também conhecida como Migração da Primavera, em chinês “chunyun”. Como país anfitrião dos Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim, que se iniciam a 4 de Fevereiro, a China vê-se a braços com o que mundos dizem ser, um teste à sua política da “Tolerância Zero”, que pretende conter a propagação do vírus através de rápida identificação de casos positivos, testagem em massa e isolamento de até três semanas. O período de quarenta dias em que os chineses se deslocam para as suas terras natais, a fim de se reunirem com as famílias, teve início no passado dia 17 de Janeiro, culmina no dia 31, véspera do primeiro dia do ano, e verá o seu fim a 25 de Fevereiro. Embora os números sejam, naturalmente, menores comparativamente ao período antes da pandemia, prevê-se um aumento significativo em comparação com o ano de 2021, com um fluxo de milhões de pessoas a movimentarem-se pelo país.
Com o advento dos Jogos de Inverno, Pequim viu um apertar das medidas de controlo a nível nacional e, em particular, na cidade que acolhe os jogos. As medidas incluem o isolamento de todos os atletas e profissionais que trabalhem nos Jogos de Inverno e que venham de fora da china dentro de uma “bolha” durante a totalidade da sua estada na capital chinesa, não devendo estes ter contacto qualquer com a população local, e existindo veículos especiais que os transportam entre o local onde se encontram hospedados e as instalações desportivas. Além disso, o Comité Organizador de Pequim 2022 comunicou já, que não serão vendidos bilhetes a pessoas vindas de fora nem ao público geral, excetuando-se à regra “espectadores selecionados”.
Na China, existem, à data, pouco mais de 2300 casos ativos. A política de “Tolerância Zero” parece prolongar-se por tempo indefinido e, embora muitos coloquem grandes expectativas num afrouxamento das medidas após os Jogos Olímpicos de Inverno, as mais recentes medidas tomadas parecem desencorajar qualquer previsão otimista de uma reabertura das fronteiras. Vozes dissonantes às medidas consideradas “extremas” e “autoritárias” da China não faltam e a OMS incentivou, recentemente, que os países levantem ou aliviem as restrições de viagens. O epidemiologista e ex-chefe do Centro Chinês de Controlo e Prevenção de Doenças chinês, Zeng Guang, defende, contudo, ser “inadequado relaxar ou levantar restrições”, e que a aplicação de tais medidas na China seria catastrófica, dadas as especificidades locais. Arquetipicamente, é quase como se a China fosse o pai autoritário e o resto do mundo os filhos mimados, a bater o pé e a contestar qualquer tipo de controlo.
A meu ver, a epidemia tem, acima de tudo, aumentado a confiança do povo chinês em relação ao seu governo e tem demonstrado a capacidade deste país gerir efetivamente massas em situações extremas – ou não seria possível convencer um centro comercial de 480,000 metros quadrados em Shanghai a proceder a um isolamento súbito de 48h dentro do mesmo, e 20 milhões de pessoas na cidade Xian, a ficarem em casa fechadas durante várias semanas, após serem descobertos meia dúzia de casos da nova variante Omicron. Parece existir me todos um brio em ser chinês e uma missão comum a ser alcançada, e é isso que os move. No ocidente falamos mal de patriotismo, como se amor ao próprio país fosse um pecado, como se nos tivéssemos habituado a falar mal do país pelo simples gosto de falar mal. Mas como mobilizar uma nação em prol de um bem comum? Como gerir uma epidemia quando todos têm uma visão divergente? Afinal, se remarmos todos para direções diferentes, alcançaremos algum resultado? Epidemiologistas preveem que epidemias como esta não serão caso isolado. Parece-me que está na hora de adotarmos um olhar objetivo e honesto e parar de acreditar na lenda do “Traje Novo do Imperador” e aceitar que, na realidade, o “Imperador vai mesmo nu”. A questão que se coloca é: o que temos para aprender uns com os outros?
Sofia Xavier LIVE no IG https://www.instagram.com/tv/CY4e5BMjo_r/?utm_source=ig_web_copy_link
*Jovem portuguesa, 25 anos, sinóloga e tradutora/intérprete de Português-Chinês, comunicadora intercultural, a viver na China há seis anos.
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