Durante muito tempo, o património pareceu algo para ser admirado, mas raramente questionado — uma herança tratada por especialistas, com pouca margem para intervenção cidadã. As decisões aconteciam longe das comunidades e das gerações mais novas. Mesmo numa Europa onde a integração já era uma realidade concreta — visível nas infraestruturas, nas oportunidades e nos discursos políticos — essa presença não se traduzia numa participação efetiva, sobretudo no campo da cultura.
A Convenção de Faro, assinada em 2005, propôs uma ideia diferente: o património cultural entendido como um direito de todos, resultado das escolhas de cada geração sobre o que merece ser preservado. Enraizado nas comunidades, deve ser trabalhado em conjunto, reconhecendo a diversidade de memórias, experiências e interpretações. Esta mudança de paradigma — que implica escuta, diálogo intergeracional e participação ativa — é hoje mais urgente do que nunca.
No Algarve, este debate é vital. Falamos de uma região periférica, marcada por desigualdades estruturais, onde os recursos para a cultura continuam escassos, dependentes de fundos a prazo e muitas vezes orientados por critérios que vêm de fora. Pensar o património aqui exige tempo, continuidade e investimento, mas também políticas que reconheçam as vozes locais e lhes deem espaço para agir.
Mesmo assim, há sinais de transformação. No concelho de Loulé, multiplicam-se os projetos que abrem o património à participação cidadã. No Museu Municipal, a atividade “Desculpe, como me chamo?” convida a comunidade, desde 2014, a ajudar a identificar os rostos retratados nas fotografias do acervo do Padre Guerreiro — um espólio de mais de 70 000 imagens que documentam o quotidiano louletano das décadas de 1920 a 1940. A partir de encontros mensais, o público contribui para reconstruir a memória coletiva e para dar novo sentido a esse arquivo visual.
Outro exemplo está nas oficinas de saber-fazer dinamizadas pela rede Loulé Criativo, que tem promovido o encontro entre artesãos e novas gerações, através de formações, residências artísticas e projetos colaborativos. Estes espaços não só valorizam práticas ancestrais — da empreita à latoaria — como permitem que o património imaterial seja vivido, reinterpretado e transmitido de forma ativa, num diálogo constante entre tradição e contemporaneidade.
Também no trabalho de recolha de memórias com moradores, em torno de festas religiosas como a da Mãe Soberana, ou em ações educativas junto das escolas, o património começa a ser entendido como algo que se constrói com os outros e não apenas sobre os outros. Estes gestos mostram como o património pode deixar de ser um arquivo fechado e tornar-se um espaço vivo de encontro e criação partilhada.
São práticas que exigem tempo, trabalho continuado, redes de colaboração e, acima de tudo, a convicção de que cada voz, cada memória e cada gesto contam para a construção de uma Europa que começa nos lugares onde vivemos.
A Europa precisa destes contributos locais. Precisa de jovens que participem nos processos culturais, não só como público, mas como co-criadores. Precisa de políticas que apoiem o trabalho de base, feitas com tempo e proximidade. E precisa, sobretudo, de aceitar que o património não é só o que está classificado ou monumentalizado: é também o que se vive, o que se transmite e o que se escolhe preservar juntos.
Falar de Europa a partir do Algarve é reivindicar esse direito à pertença e à participação. É recusar a ideia de que o nosso lugar é só receber decisões tomadas noutros centros. E é lembrar que uma democracia cultural começa no território — no bairro, na freguesia, no museu, na escola — sempre que alguém é chamado a fazer parte.
Se a Convenção de Faro nos convida a passar da preservação estática à participação ativa, a verdadeira pergunta é: estaremos dispostos a mudar as práticas institucionais, a investir de forma sustentada e a desenhar políticas que façam do património uma experiência partilhada?
Sobre a autora do artigo: Núria Rey é licenciada em Património Cultural pela Universidade do Algarve e mestranda em História e Patrimónios. Trabalha no Museu Municipal de Loulé, onde tem colaborado em projetos ligados à valorização do território, à investigação histórica e à dinamização cultural.

“40 Visões da Europa”
A 12 de junho de 1985, Espanha e Portugal assinaram o Tratado de Adesão às então Comunidades Europeias (Comunidade Económica Europeia, Comunidade Europeia da Energia Atómica e Comunidade Europeia do Carvão e do Aço). Este foi o terceiro alargamento.
O Europe Direct Algarve, a CCDR Algarve, a Eurocidade do Guadiana e outros parceiros transfronteiriços associaram-se para assinalar a data. A rubrica «40 Visões da Europa» vai dar voz a 40 pessoas (líderes políticos e associativos, jovens, cidadãos ,..)
Entre 4 de maio e 12 de junho (data da assinatura dos 40 anos do Tratado de Adesão) todos os dias um artigo . Mais informação sobre a campanha na página conjunta (4) Facebook
Leia também: 40 visões da Europa: Dignidade e oportunidades para todos | Por Jack Palmer

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