Receber uma herança pode parecer uma bênção, mas por vezes transforma-se num verdadeiro problema. Foi o que aconteceu a Dominga Guzmán, uma mulher espanhola que recebeu inesperadamente uma herança de um sobrinho com quem mal falava. O caso, que se tornou público em Espanha, levantou uma questão que muitos desconhecem: o peso fiscal que pode recair sobre os chamados herdeiros colaterais, aqueles que não são descendentes nem ascendentes diretos.
Dominga recebeu uma herança no valor de 200 mil euros de um sobrinho que morreu sem deixar testamento. Por não ter filhos, pais ou outros familiares diretos vivos, foi ela quem acabou por ser designada como herdeira legítima, por ser a parente mais próxima ainda viva. A princípio, recebeu a notícia com surpresa e alguma alegria, mas rapidamente o presente se revelou uma armadilha fiscal, de acordo com o jornal digital espanhol Noticias Trabajo.
O imposto que transformou o presente em pesadelo
Para poder receber o dinheiro, Dominga teve de pagar à Autoridade Tributária espanhola o imposto sobre sucessões, no valor de 60 mil euros. Pouco tempo depois, foi novamente notificada: o Fisco exigia-lhe justificar levantamentos em numerário feitos pelo sobrinho um ano antes da sua morte, num total de 108 mil euros.
Sem provas sobre o destino dessas quantias, as autoridades consideraram-nas parte do património herdado. O resultado foi uma nova cobrança de 45 mil euros, elevando o total exigido a 308 mil euros. O que parecia um golpe de sorte transformou-se num “presente envenenado”, como lhe chamou a mesma fonte.
A lei espanhola é clara
O advogado Álvaro Sánchez, especialista em direito sucessório, citado pela mesma fonte, explicou em televisão que “a lei presume que os bens do falecido no ano anterior ao óbito integram a herança”. O artigo 11 da Lei 29/1987, de 18 de dezembro, do Impuesto sobre Sucesiones y Donaciones, sustenta precisamente essa posição.
Já o inspetor de Hacienda, Julio Ransés, acrescentou que “qualquer bem existente durante o último ano antes da data de falecimento deve ser incluído no cálculo do imposto”, mesmo que o dinheiro já não conste nas contas no momento da morte. A intenção é evitar que familiares retirem montantes antes do óbito para escapar à tributação.
Origem da regra
Segundo o inspetor, esta norma foi criada porque era frequente que familiares próximos retirassem dinheiro das contas de quem estava prestes a falecer, complicando a verificação fiscal. Assim, o Estado passou a considerar que todos os bens detidos no ano anterior devem ser contabilizados, salvo prova em contrário.
No caso de Dominga, que vivia em Córdoba enquanto o sobrinho residia em Madrid, essa prova era impossível, de acordo com o Noticias Trabajo. “Eu não sei o que ele fez com o dinheiro, nem tínhamos contacto”, lamentou. Sem essa justificação, o Fisco aplicou a lei à letra.
E se acontecesse em Portugal?
Uma situação semelhante poderia ter contornos diferentes em Portugal, embora o resultado também pudesse ser oneroso para o herdeiro. O nosso país aboliu o imposto sucessório tradicional, mas mantém o Imposto do Selo sobre transmissões gratuitas, que se aplica a heranças e doações.
Quem paga imposto em Portugal
Em Portugal, apenas os herdeiros legitimários, ou seja, o cônjuge, os filhos, os netos, os pais e os avós, estão isentos de imposto de selo sobre heranças. Todos os outros beneficiários, incluindo tios, sobrinhos e cunhados, pagam uma taxa de 10% sobre o valor dos bens herdados que estejam situados em território português, conforme o artigo 1.º, n.º 1, alínea e) e o artigo 26.º do Código do Imposto do Selo. Assim, se o caso de Dominga acontecesse cá, a mesma teria de pagar 10% sobre o valor herdado, ou seja, 20 mil euros, sem qualquer isenção especial.
O que acontece quando não há testamento
Quando alguém morre sem testamento em Portugal, aplica-se o regime da sucessão legítima, previsto no Código Civil (artigos 2131.º a 2157.º). A herança é distribuída por ordem de parentesco: primeiro os descendentes, depois os ascendentes e o cônjuge, e só mais tarde os colaterais (irmãos, sobrinhos, tios). No caso de não existirem descendentes nem ascendentes vivos, a herança passa para os irmãos ou sobrinhos do falecido. Se também não existirem, os bens revertem para o Estado.
Prazos e obrigações legais
Quem recebe uma herança deve comunicá-la à Autoridade Tributária no prazo de três meses após o falecimento, através da declaração Modelo 1 do Imposto do Selo. O não cumprimento desse prazo implica coimas e juros de mora. Além disso, é essencial comprovar a origem e o valor dos bens herdados, como dinheiro, imóveis, veículos e contas bancárias, para que o cálculo do imposto seja feito corretamente.
Se Dominga vivesse em Portugal, a situação seria mais simples em termos de cálculo, mas ainda assim pesada do ponto de vista fiscal. Apesar de o imposto não atingir as proporções espanholas, a taxa de 10% poderia significar uma despesa considerável, sobretudo se o herdeiro não tiver liquidez imediata.
E, tal como em Espanha, os levantamentos ou transferências feitos pouco antes do falecimento poderiam levantar dúvidas e ser alvo de investigação.
Uma lição para todos
Casos como o de Dominga Guzmán mostram como uma herança pode ser uma surpresa amarga quando não há planeamento sucessório. Fazer um testamento claro, manter a documentação financeira organizada e conhecer as regras fiscais do país são passos fundamentais para evitar situações semelhantes.
















