A história de Richard Joy, um homem britânico de 82 anos, tornou-se o centro de uma disputa judicial em Harrow, Inglaterra. O homem reformado, que viveu toda a vida na mesma residência avaliada em mais de 750 mil euros, acabou por deixar a propriedade a Mariia Romanyshyn, uma empregada de mesa ucraniana que conheceu num café local. A família, contudo, recorreu aos tribunais, alegando que Joy já não tinha plena capacidade para compreender o alcance da decisão. O processo remonta a 2016.
De acordo com o jornal digital espanhol Noticias Trabajo, Joy conheceu Romanyshyn em 2011, quando esta trabalhava na cafetaria Upper Crust. A relação foi-se estreitando e, com o tempo, a empregada e a sua família mudaram-se para a casa do reformado. Durante o julgamento, Romanyshyn recordou o afeto do idoso, afirmando que ele a incentivava a sentir-se parte da família: “O meu desejo é que esta seja a casa da tua família.”, terá dito.
Caso remonta a 2016
A trabalhadora ucraniana declarou que, em 2016, Joy lhe entregou as escrituras da casa com a frase: “Tenho um presente para ti. A casa é tua. Quero que fiques com ela.” O gesto não a surpreendeu, pois o reformado já lhe teria manifestado, em várias ocasiões, a intenção de a incluir no testamento, chegando mesmo a pedir-lhe os dados pessoais para deixar-lhe um anel de diamantes.
Contudo, o testamento oficial de 2011 destinava a maior parte da propriedade ao primo Martin Larney, à mãe deste e a um amigo próximo.
Larney, que também foi nomeado executor da herança, argumenta que o familiar estava fragilizado e dependente de Romanyshyn nos últimos anos, o que colocaria em dúvida a validade da doação.
Influência da mulher sobre o idoso
Segundo a acusação, citada pela mesma fonte, Romanyshyn não só residia na casa com o marido e o filho enquanto Joy ocupava apenas um quarto, como também controlava as finanças, as consultas médicas e as tarefas diárias do idoso. Para o advogado de Larney, Andrew Nicklin, tal situação colocava a empregada numa posição de “influência direta” sobre o testador.
A defesa rejeitou qualquer cenário de manipulação. De acordo com a advogada de Romanyshyn, Joy nunca teve diagnóstico de demência e mantinha autonomia suficiente para conduzir as suas rotinas: “Ia ao pub, fazia compras e utilizava transportes públicos.” Sublinhou ainda que nem a empregada nem a sua família receberam qualquer compensação monetária pelo apoio prestado: “Joy foi tratado como um membro da família.”
Romanyshyn mencionou ainda a ligação emocional que manteve após a morte do idoso, em 2018: “Continuo a organizar um serviço comemorativo todos os Natais e deixo flores na campa dele. O senhor Larney não faz nenhuma destas coisas.”
Caso foi a tribunal
O litígio sobre a casa de Richard Joy, avaliada em mais de 750 mil euros, foi finalmente resolvido no Central London County Court, a 31 de março deste ano.
Depois de anos de disputa entre os herdeiros e a empregada ucraniana, o juiz Simon Monty KC homologou um acordo que determinou o indeferimento do pedido de Romanyshyn. Assim, segundo o Noticias Trabajo, prevaleceu o testamento manuscrito de 2011, que deixava a maior parte dos bens ao primo Martin Larney, à mãe deste e a um amigo de longa data.
Embora Romanyshyn tenha insistido que Joy lhe entregou as escrituras da casa em 2016 como presente, o tribunal considerou válido apenas o testamento original. A partir daí, a propriedade passou formalmente para os herdeiros legais, encerrando o processo judicial.
Ainda assim, alguns meios de comunicação indicam que a empregada resistiu a abandonar o imóvel, prolongando a polémica mesmo depois da decisão final.
E se acontecesse em Portugal?
Se um caso semelhante ocorresse em Portugal, o desfecho poderia seguir linhas muito parecidas, mas dentro de um enquadramento jurídico específico do Código Civil português.
De acordo com a lei portuguesa, uma doação entre vivos de um imóvel só é válida se for formalizada através de escritura pública, assinada perante notário e posteriormente registada na Conservatória do Registo Predial. Esta exigência está prevista no artigo 947.º do Código Civil, que determina a forma obrigatória da doação de bens imóveis.
Assim, uma simples entrega de documentos ou promessa verbal, como a descrita no caso britânico, não teria valor jurídico para transferir a propriedade, conforme reforça também o artigo 410.º, que exige forma legal para validade dos contratos sujeitos a registo.
Quando existem herdeiros
Além disso, quando existem herdeiros legitimários, como filhos, cônjuges, ascendentes ou, na falta destes, outros familiares diretos, o testador não pode dispor livremente de todo o património. Essa limitação decorre dos artigos 2156.º a 2158.º do Código Civil, que definem a legítima e a quota disponível da herança. Ou seja, apenas uma parte dos bens (geralmente um terço, dependendo do número de herdeiros) pode ser deixada a terceiros; o restante pertence obrigatoriamente aos herdeiros legitimários.
Outro aspeto relevante seria o estado de saúde mental do testador ou doador. Caso houvesse indícios de incapacidade, manipulação ou coação, a família poderia impugnar o ato com base no artigo 2199.º, que permite a anulação de disposições testamentárias quando exista falta de discernimento. Poderia ainda invocar-se o artigo 282.º, relativo à anulabilidade por vícios de vontade, como erro, dolo ou coação moral.
Por fim, se a empregada de mesa tivesse vivido e cuidado do idoso, já reformado, durante vários anos, poderia, em algumas situações, reclamar compensação por serviços prestados, com base no enriquecimento sem causa previsto no artigo 473.º do Código Civil. Contudo, essa compensação teria natureza patrimonial e não lhe conferiria qualquer direito de propriedade sobre o imóvel.
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