O Segundo Coração, de Bruno Vieira Amaral, publicado pela Quetzal, em novembro de 2022, reúne crónicas publicadas na edição online do semanário Expresso e na revista GQ.
«O passado bate em mim como um segundo coração.»
É à frase de John Banville, que surge em epígrafe, no original, que o autor se vai inspirar para o título deste novo livro.
São pouco mais de uma centena de breves textos, cada um com cerca de três páginas, não explicitamente agrupados em torno de diversos temas específicos. Já perto do final do livro, por exemplo, podemos ler algumas crónicas sobre a pandemia da covid-19. Mas as temáticas que aqui sobressaem são, a fazer jus à epígrafe, o passado, as memórias de infância, os hábitos familiares, as férias grandes, os primeiros amigos de que nos afastamos mas nunca esquecemos, e cujo reencontro significa resgatar ou suspender o tempo devoluto. Divagações sobre os professores que mais marcaram, as tardes roubadas no cinema e a arte como refúgio, e o poder indelével das leituras que se citam aqui e ali. Crónicas que se tecem como páginas do diário do crescimento inevitável de um rapaz que entra aos solavancos na idade adulta, de um jovem que se descobre pai e educa os seus próprios filhos naquele que foi o seu berço, num bairro onde crianças e velhos se misturavam nas mesas do café, pelo que as gerações eram cúmplices e as idades facilmente intermutáveis:
“Entretanto, os meus velhos morreram ou são apenas monumentos arruinados, memórias insepultas que visitamos nos seus cadeirões fúnebres feitos de silêncio e olhares perdidos, e eu tornei-me adulto, de todas a pior idade, um purgatório de muitas responsabilidades e poucos encantamentos, e os que existem são aqueles que nos devolvem, por instantes, ao tempo em que éramos velhos.” (p. 301)
Perpassa sobretudo, em muitos destes textos, uma nostalgia dos tempos idos, em que havia apenas dois canais de televisão, que marcavam um recolher obrigatório para as crianças, com o Vitinho, e para os adultos, com o hino. Mais subtilmente estas crónicas dizem-nos ainda algo sobre a relação do escritor com o mundo, não só pela arte que lhe toca – como os livros e os filme aqui evocados –, mas também pelos indícios da sua primeira relação com as palavras ouvidas aos adultos, da forma como escrevinhava cadernos por casa, ou quando nos fala do jovem de dezassete anos “que mergulhava a medo nas ondas bravias e passava os dias ao sol e entrava nos livros e revirava as palavras que o reviravam a ele”: “onde é que ficou? Em que ponto do caminho nos separámos? Será que ainda luta com as palavras e sofre e é perturbado por elas? Será que ainda lhes sente o sabor virgem?” (p. 190)
Nestas crónicas nostálgicas há ainda lugar para reflexões ora sagazes ora divertidas, como, por exemplo, a que nos fala dos telefones fixos e do atrevimento que era telefonar para a casa de uma jovem, quase “como se entrássemos no quarto da rapariga a meio da noite por uma janela e nos preparássemos para a raptar” (p. 165).
Muitas destas crónicas corajosamente assumidas na primeira pessoa parecem fazer eco de aspetos pessoais da vida do autor, além de estarem imbuídas de grande autenticidade, da mesma forma que fazem eco de algumas das suas grandes paixões, que não se subsumem à literatura; é o caso do futebol.
A certa altura, escreve-nos o cronista que não é fácil medir o tempo de uma memória (p. 28). De certa forma, da mesma forma que nestas crónicas se suspende o tempo, e se consegue recuar décadas, também a prosa do autor, num par de páginas apenas, consegue conduzir o nosso pensamento em circunvoluções, que entrelaça temas aparentemente díspares, sem sabermos muito bem como. Não é por acaso que uma das obras de W.G. Sebald, autor aqui mencionado mais que uma vez, seja Os Anéis de Saturno, uma narrativa engenhosamente sinuosa.
O Bairro
Quase metade do livro é generosamente dedicada ao Bairro – um bairro nos subúrbios da margem sul, perto da Baixa da Banheira. As primeiras crónicas são-lhe dedicadas, assim como a ele regressamos mais perto do final do livro. E, por isso mesmo, se a sinopse não no-lo dissesse, sentiríamos que estávamos de volta à ficção com que o autor nos introduziu, em As primeiras coisas (Quetzal, 2013). O seu romance de estreia, nunca é demais lembrar, configurou uma obra singular e inovadora que se demarcou na novíssima ficção portuguesa, assinalando a estreia literária de um autor com um percurso peculiar. Esse romance, concebido em jeito de dicionário, constitui-se por 86 entradas, que nem sempre correspondem verdadeiramente a microficções isoladas e autónomas; algumas entradas não são narrativas, outras acarretam notas de rodapé maiores do que o próprio texto e, ora atestam o seu carácter documental, ora contradizem o texto principal. Apresentado como um (projeto de) romance ambiguamente autobiográfico, o narrador, Bruno, desempregado e separado, derrotado na vida, revisita o bairro onde cresceu. Este périplo configura-se como uma viagem simbólica de descensão ao Inferno dos subúrbios, que permite a reconstrução da memória pessoal e redescobrir uma profusão de personagens que compõem um retrato de um país miserável.
Dezenas de crónicas deste O Segundo Coração reconduzem-nos assim de regresso ao Bairro – de onde, como nos escreve o autor, nunca se sai verdadeiramente, um pouco como os nove círculos do Inferno…
Não é por acaso, como alguém lhe diz, que o autor terá aliás continuado a viver por perto do Bairro, o seu “lugar de pertença” (p. 117), da mesma forma que aprimora a sua “técnica de revisitar memórias” (p. 39). Algumas delas aliás reencontradas, pois já lemos sobre elas antes, como quando o autor nos diz que a mãe lhe lia histórias da Bíblia…
Bruno Vieira Amaral estudou História Contemporânea. Um autor discreto a ter em grande conta, é crítico literário, ensaísta e romancista. Atualmente colabora com a Ler, o Expresso e a Rádio Observador. O seu primeiro romance, As Primeiras Coisas, foi distinguido com variadíssimos prémios (entre eles, o José Saramago e o Fernando Namora) e mereceu, em 2016, a nomeação para Uma das Dez Novas Vozes da Europa. O seu segundo romance, Hoje Estarás Comigo no Paraíso (Quetzal, 2017), recebeu o prémio de ficção Tabula Rasa 2016-2017 e obteve o segundo lugar do Prémio Oceanos 2018, ano em que foram reunidos os melhores textos dispersos no volume Manobras de Guerrilha. Em 2020, publicou Uma Ida ao Motel e outras histórias. Os seus livros estão traduzidos em várias línguas.