Numa crónica anterior(1) falei muito brevemente de João Lúcio (1880-1918) um poeta natural de Olhão, onde também morreu, mas que não foi nem só olhanense, nem só algarvio: João Lúcio foi um cidadão da sua terra e também do mundo onde viveu e deixou marcas. João Lúcio – e é por isso que a ele regressamos – tinha também a particularidade de intuir a invisível alma das coisas. Dizia ele:
“Quando em baixo, ruje, o temporal, sem fim, dessa miséria,
oh Pó, em que tu te esfacelas,
Eu subo à minha Torre esguia, de marfim,
onde me coa o sonho, o filtro das estrelas.”
Na verdade João Lúcio foi um homem superior, mas que não teve à época o reconhecimento generalizado dos seus pares, talvez por um certo gosto pela solidão e pela transcendência que esta torna possível e também, quem sabe?, pela jovem idade em que a morte injustamente o arrebatou.
A obra literária de João Lúcio – que fala por ele, do ponto de vista artístico -, foi contudo citada, referida e estudada em épocas diversas por diversos autores, e quem tenha curiosidade de conhecer melhor essa faceta do poeta tem muito material à disposição.
Mas do que eu e o António(2) queremos mesmo falar é, não de poesia, mas de uma certa arquitetura e talvez da sua simbologia oculta. Na verdade ficámos curiosos com o refúgio do poeta, essa tal torre esguia, de marfim, onde o filtro das estrelas lhe coava os sonhos.
Essa Torre de Marfim não existiu apenas e só na imaginação de João Lúcio. Ela foi efetivamente construída e seria nela que a grande Ceifeira – hélas – lhe marcaria o fatal encontro. A casa é conhecida pelo nome prosaico de Chalé do João Lúcio e repousa na Quinta de Marim, nos arredores de Olhão, entre pinhais e aragens de maresia.
Foi num dia de intenso calor que nos deparámos com a fachada (na verdade com uma das fachadas) do Chalé de Marim, semioculta entre os pinhais. Como tanta coisa pelo Algarve fora, também esta não estava acessível. Um casal de estrangeiros circulava por ali como nós, sacudindo as portas fechadas. Eis senão quando se entreabre uma das portas e surge o rosto de Ana Bandeira, vigilante, cuidadora e guia do Chalé. Sorte a nossa! Algo no nosso aspecto desanimado deverá ter feito vibrar a corda da compaixão no coração da dona Ana pois, após breves apresentações, franqueou a entrada, a nós e aos sortudos estrangeiros.
O António atirou-se logo para o chão e começou a fotografar, de baixo para cima, a cúpula que remata toda a construção. Eu fiquei no átrio, tolhido, a olhar com receio uma figura toda de branco que parecia convidar-me a tomar um caminho. “Vem viajante. Entra. Espreita e vê se entendes…”, parecia ele dizer-me. “É o fantasma do João Lúcio”, esclareceu-me a dona Ana, pousando a mão com familiaridade sobre a estranha figura.
Ah!, o fantasma! Então estava tudo explicado. A presença de João Lúcio pairava ainda sobre a construção que imaginou e concretizou: uma casa de dois pisos com quatro entradas iguais, alinhadas com os pontos cardiais, sobrepujando quatro escadarias todas com diferentes formatos e simbolismos. À volta da casa, ao nível do primeiro piso, corre uma balaustrada. Simbolizará um percurso sem princípio nem fim? Simbolizará quiçá a eternidade? Ou o eterno retorno?
Muito já foi escrito e está por aí disponível ao público sobre a semiótica das “quatro” escadarias do Chalé. Remeto os meus leitores interessados para esses sapientíssimos comentários e passo à frente, porque quero falar de coisa bem diferente. Quero falar-vos de um Sinal que encontrei plasmado na pedra.
É justo dizer que quem me chamou a atenção para o facto foi o meu amigo António que – como já referi – no seu primeiro disparo, de baixo para cima, talvez levado por uma feliz intuição, me entregou de mão-beijada a chave desse enigma. Na verdade, a Torre de Marfim do João Lúcio não é – como parece à primeira vista – uma celebração do número quarto e dos seus intermináveis significados: os quatro pontos cardiais; as quatro letras do nome de deus; os quatro elementos; as quatro divisões da vida; os quatro arcanjos; o quadrado; a cruz…
Não! Se observarmos com atenção as três fotografias de interior que o António fez, lá veremos outro número. Ora contem as colunas! Ora contem agora os misteriosos degraus!; Finalmente, atentem na rosácea de mármore no chão junto do fantasma do poeta que nos aponta não para a esquerda como eu supus mas para um local diferente, ou melhor para uma outra realidade. “Vem viajante. Entra e vê se entendes…”, dizia-me ele há pouco em silêncio e agora com satisfação eu lhe respondo: “Não é o quatro que me ofereces, João Lúcio, mas o oito”.
O oito. “O oito?! Mas porquê o oito?!”, perguntar-me-á o leitor. Pois então, siga o meu raciocínio: segundo o Livro do Génesis, Deus fez o mundo em seis dias: os mares, os céus, a terra, as plantas, animais, homem e mulher. Ao fim desses dias bem trabalhosos, Deus – segundo o Livro – descansou. Era o sétimo dia. Tudo estava feito, completo, terminado. “Então tudo acaba aí?”, perguntará o leitor. “Não”, respondo eu, porque a seguir ao número sete vem o oito, um novo começo; uma nova geração. O oito é nada mais nada menos que uma ressurreição. Um recomeço. De alguma maneira, um símbolo de eternidade. Era isso então o que me sussurrava o fantasma do João Lúcio: “Estou por aqui, viajante e buscador, estou por aqui, só que num outro plano, numa outra dimensão.”
E leio a outra luz os últimos versos do belo poema Descendo, que reza assim:
“[…] quanta grandeza foge à curva da visão:
Quanto espaço não há para além dos Espaços!”(3)
Pois é, João Lúcio, parece-me que agora já entendi.
(1) Paulo Larcher, O Algarve de costa-a-costa, Olhão, Cultura Sul, Postal do Algarve, 4-02-2022
(2) Mestre António Homem Cardoso, fotógrafo e amigo, que me tem acompanhado neste trajecto algarvio.
(3) João Lúcio, in Poesias Completas, p. 55, p 114-20