Conta uma antiga lenda que o nosso Rei Dom Afonso III viveu no castelo de Albufeira muito apaixonado por uma bela escrava muçulmana que, infortunadamente, já teria entregue o seu coração a um homem da sua religião. Mas as lendas têm o condão de conduzir as narrativas para onde mais lhes convêm e, nesta em particular, o amor do Rei consegue derrubar as reticências da linda moura e conceber um rebento real que lhes permitirá viver felizes para sempre, protegidos pelas vigorosas fortificações do castelo.
Linda história mas falsa, como é aliás o timbre da maior parte das lendas: não houve Rei, nem moura, e quanto ao forte castelo é necessário uma forte imaginação para o visualizar quando se olha o diminuto pano de muralha que ainda lá está, derribado, in memoriam. Mas eu, baseado nos dados históricos disponíveis, garanto a autenticidade das antigas muralhas: altas, poderosas, pouco menos que inexpugnáveis.
Albufeira, aliás, pode apresentar galões históricos de gabarito. Foi na época romana um burgo com uma forte actividade económica baseada na pesca e na mineração e, após a conquista árabe no Séc. VIII, ganhou novas fortificações e importância económica, sobretudo graças ao comércio que foi capaz de desenvolver com o norte de África.
Em 1249, Dom Afonso III (o nosso herói na lenda romântica), atacou Albufeira mas esta resistiu valentemente. Penso até que terá sido a última cidade do Al-Garb a ser tomada pelos soberanos cristãos. Desgraçadamente, os oficiais cavaleiros da Ordem de Aviz, a quem a praça foi oferecida, encarregaram-se do quase completo extermínio da população moura. Desde essa altura Dom Afonso III autoproclamou-se Rei do Algarve, título que, curiosamente, a nossa monarquia ostentou até ao malogrado Dom Manuel II.
Verdade é que após a conquista Albufeira cresceu em importância e dimensão – recebeu foral de D. Manuel I em 1504 – crescimento travado pelo terramoto de 1755 e terrível maremoto que se seguiu, tendo causado uma enorme mortandade e destruição do edificado. Menos de um século depois, em 1833, não teve também modo de escapar a outro episódio sangrento ocorrido durante a guerra que opôs miguelistas a liberais. Um facínora, de alcunha O Remexido, mais os seus homens de mão, atacaram-na e passaram a fio de espada um considerável número de habitantes.
A cidade entrou então num acentuado declínio económico e social só contrariado já nos finais do Séc. XIX e meados do século XX, pelo surgimento da indústria conserveira e do crescimento da exportação de frutos secos, a meias com alguma indústria ligada ao processamento da alfarroba. Depois, entre 1930 e 1960, uma insidiosa decadência tomou conta da povoação até ao poderoso resgate permitido pelo turismo de massas a partir dos anos sessenta, ao qual se seguiu um enorme crescimento urbanístico nos anos oitenta.
Visitei Albufeira no passado mês de janeiro. Já não o fazia há pelo menos 40 anos! Uma vida.
É claro que em janeiro não se visita o Algarve com o mesmo estado de espírito que se tem em agosto. Nem, aliás, a cidade apresenta um aspeto agradável aos seus poucos visitantes. Pressente-se um clima de abandono. Nas ruas dos bairros antigos passamos por lojas, por restaurantes e bares, todos encerrados. Os seus anúncios desatualizados (apenas em inglês 90% das vezes), dão-nos uma noção do que deverão ser na época alta. Há que fazer um forte apelo à imaginação para povoar a Avenida da Liberdade – artéria principal da cidade velha – com as torrentes de turistas que por ela passam em marés que no Verão são sempre cheias.
As estatísticas refletem a brutal diferença de atividade entre verão e inverno, mas não deixam transparecer a melancolia que perpassa aquelas ruas e praças desertas, desarrumadas, expectantes, aguardando um novo verão que as resgaste da crise sazonal e reate o cash-flow tão desejado.
Talvez esteja a ser demasiado impiedoso nesta apreciação porque Albufeira, embora quase vazia, respira uma atenção cuidadosa à qualidade urbana. É verdade que nas áreas para onde a cidade moderna se expandiu, as grandes avenidas são extensas, rasgadas, arborizadas, limpas. Nada a dizer.
Contudo, eu trazia na cabeça o sonho de rever a vilazinha ingénua da minha adolescência, de me acomodar numa esplanada muito rústica de que estranhamente me recordava do local – voltado a umas arribas ocre e a um mar turquesa – e do nome: A Ruína.
Lembrei-me até que dessa vez comera um belo e fresquíssimo peixe grelhado vindo diretamente das ondas do mar para o prato, pois nessa época não se inventara ainda a aquacultura. Para minha gratíssima surpresa, no passeio pela Rua da Bateria passei à porta dessa mesma casa, mas estava fechada. Tive pena. Tanto que gostaria de ter revisto a inesquecível paisagem que seguramente deverá manter, e de ter encomendado o peixe mais atrativo que os modernos expositores me sugerissem, indiferente à inevitável contraparte financeira.
Pelo contrário almocei no único restaurante que encontrei aberto na Praça da Cidade Velha ou, para o dizer como os locais, Old Town Square. Encomendámos duas pizzas. Experiência a não repetir… Chegámos por volta do meio-dia e sentámo-nos na esplanada que em coisa de meia-hora se encheu de velhos e velhas (mais eles que elas)1. Todos de língua inglesa. A maior parte muito desmanchada e semi-nua num frio de janeiro apesar de amaciado por um Sol soberbo. Todos (ou quase) já bebiam àquela hora álcoois diversos; todos muito relaxados e conversadores. Reparei então melhor no fenómeno: há velhos por todo o lado em Albufeira. A cidade descobriu uma fonte inesgotável de receita para as épocas baixas: os velhos ingleses middle-class.
Imagino eu que, com o avançar do ano, a faixa etária vá diminuindo paulatinamente até às invasões juvenis do verão. Não interessa. É uma maneira de obter alguma receita e esperar pelos verões. De facto, uma temperatura de 20 graus ao Sol deve parecer um Éden a estes seres de ossos atacados pelos reumatismos e pelas artroses. Existem para cima de trinta mil ingleses a residir no Algarve a maioria em Albufeira. Eles e muitos outros adquiriram imobiliário. Esta situação, embora seja conveniente do ponto de vista económico levanta algumas preocupações. Quando eu questionei a empregada que nos trouxe as pizzas, uma azougada algarvia de olhos cor de mel, esta não teve papas na língua:
– Estes velhotes gostam dos copos mas são sossegadinhos – afirmou ela – e são eles que me pagam o ordenado ao fim do mês.
– Mas no verão – retruco eu, a tentar tirar nabos da púcara – isto é tudo deles. Ou não?
– Ó senhor! isto no verão é pior que Gibraltar! – e com esta se foi a empregada azougada.
Seria injustificável e imperdoável não fazer uma referência ao aspecto mais espantosamente belo e harmonioso de Albufeira: a sua frente de mar entre as praias do Peneco e a dos Pescadores. A falésia, talhada num tom castanho alaranjado que contrasta com as casas e vedações muito brancas, surge com uma força telúrica impressionante. Não deve ser só minha, esta opinião. Será seguramente partilhada pelos grupos humanos – provavelmente ingleses – que transitam lá em baixo, caminhando calmamente sobre as cómodas passadeiras de madeira que cobrem a areia escura, tendo de um lado o pacífico e amigável oceano e, do outro, a força imensa da falésia apaziguadora.
(1) Posso chamar “velhos” aos “seniores” porque eu também o sou e acho mais simpático ser um velho pachola do que um sénior recalcitrante.