No ano em que se comemora o cinquentenário do 25 de Abril, a Dom Quixote oferece aos leitores a edição especial de dois dos romances mais emblemáticos desta data. Romances esses que são também, quase de certeza, os dois títulos mais incontornáveis na obra da autora que melhor representa o Algarve.
Para comemorar os 50 anos do 25 de Abril, a editora relançou assim, no passado mês de Abril, O Dia dos Prodígios, primeiro romance de Lídia Jorge, que inaugurou uma nova fase na literatura portuguesa, em fevereiro de 1980, e Os Memoráveis, agora que se completam dez anos desde a sua publicação, tendo-se tornado um texto literário emblemático em que a autora revisita a Revolução dos Cravos. E a comprovar o talento desta autora, note-se como um tema comum aos dois romances é trabalhado de forma tão diversa. O Dia dos Prodígios éum texto entre o poema e o teatro, na sua prosa poética, que procura retratar o falar de uma comunidade – e que foi décadas mais tarde adaptado a teatro. Vencedor do Prémio Urbano Tavares Rodrigues, objeto de várias reedições e traduções, Os Memoráveis surge como se se tratasse de um roteiro de documentário, convocando dados e recuperando figuras de Abril de 1974.
As duas obras, separadas por mais de 30 anos, bebem da força do mito e da transfiguração do real que só a grande literatura consegue: a primeira parte de Os Memoráveis intitula-se não por acaso «A Fábula»; a população de O Dia dos Prodígios não compreende que boa nova é essa quando lhes falam de uma Revolução numa cidade lá longe, e estão mais preocupados com desvelar o sentido de uma serpente que ganhou asas e voou por cima deles).
Lídia Jorge estreou-se com a publicação de O Dia dos Prodígios (1980), um dos livros mais emblemáticos da literatura portuguesa pós-revolução.
Desde então tem publicado obras nas áreas do romance, conto, ensaio, teatro, crónica e poesia. Os seus textos têm sido adaptados para teatro, televisão e cinema e têm sido distinguidos com os principais prémios literários nacionais, sendo o mais recente o Prémio Eduardo Lourenço (2023). De entre os seus livros destacam-se A Costa dos Murmúrios, O Vale da Paixão, O Vento Assobiando nas Gruas (adaptado a cinema este ano e ao qual voltaremos numa próxima edição do Cultura.Sul), e Estuário.
Autora amplamente traduzida e publicada no estrangeiro, entre os prémios internacionais que recebeu contam-se o Prémio ALBATROS da Fundação Günter Grass e o Prémio FIL de Literatura em Línguas Românicas de Guadalajara.
Misericórdia (2022), o seu mais recente romance, foi galardoado com o Grande Prémio de Romance e Novela da APE/DGLAB, o Prémio PEN Clube Português de Narrativa, o Prémio Urbano Tavares Rodrigues, o Prémio Literário Fernando Namora/Estoril-Sol e o Prémio Médicis Estrangeiro, atribuído pela primeira vez a um autor de língua portuguesa.
A cobra que ganhou asas
O Dia dos Prodígios foi o romance de estreia de Lídia Jorge, publicado em 1980, e nele perpassa um forte sentido de autobiografia, escrito com base na memória da terra de Boliqueime, onde nasceu, e em que reflete o imaginário e o modo de vida de um ambiente rural. O registo linguístico remete para o regional e popular, com recurso a diversos termos algarvios, mas existe igualmente uma forte dimensão mítica, que se constrói a partir do realismo mágico. Logo quando publicado, este romance foi apontado como uma obra inaugural desse género de ficção, caracterizado pelo uso do maravilhoso, aproximando-se de escritores como Gabriel García Márquez ou William Faulkner (um dos seus escritores preferidos).
Em 2010 realizaram-se, na Câmara Municipal de Loulé, diversas iniciativas em comemoração do 30.º aniversário da obra, ano em que também se publicou uma edição comemorativa da obra, pela Dom Quixote, coincidindo ainda com a sua adaptação e para teatro por Cucha Carvalheiro, ex-diretora do Teatro da Trindade, em Lisboa, estreando em 23 de setembro de 2010, com um elenco onde constavam diversos atores como Maria Emília Correia, Cristina Cavalinhos, Diogo Morgado e Filomena Cautela. Esta peça foi inclusivamente levada ao Cineteatro de Loulé em março de 2011.
A magia
Na intriga existem diversos elementos que atestam a ocorrência do mágico: uma comunidade que acredita numa cobra que depois de morta ganha asas e voa; um rio que secou há cem anos sem razão aparente; crenças e superstições locais que se referenciam, «Só havia ali na curva do rio um moinho velho, onde, de noite, apareciam medos» (p.31); Pássaro Volante que julga que a sua mula se riu dele e lhe fugiu; as insolações lunares de Macário que o fazem dormir durante catorze dias do mês. Mas é em Branca que o mágico se concentra mais fortemente, à semelhança de outras personagens femininas com poderes sobrenaturais, como a Blimunda de Saramago. Branca, cujo nome próprio está imbuído de uma ideia de luminosidade que remete para o celestial, insinuando uma magia que provém dos céus, possui capacidades de adivinhação que lhe permitem atravessar as distâncias do tempo não-acontecido: «Assim Branca, com dezassete anos vira a Pássaro. De rosto tão quadrangular e olho tão assestado sobre a sua carnação mal coberta por um vestido de popelina, que fora forçada a dizer. (…) Vai ser aquele, porque tem cara de me querer bater toda a vida. Já então se supunha com um alcance que ia mais além do presente até agarrar o futuro, com uma vidência feita de sobressaltos e chamada por palavras.» (p. 66).
Branca
Branca (uma das personagens verdadeiramente incontornáveis na obra da autora) vive retida em casa, controlada pelo marido através da bordadura de uma colcha branca, onde figura um dragão, tarefa que ele impôs como forma de controlar o seu tempo livre, enquanto ele, como o próprio nome de Pássaro Volante indica, anda por aí em liberdade, com as suas mulas, à semelhança de um cavaleiro andante que deixa a sua donzela na torre, guardada por um dragão: «Tinha dito uma vez em frente de pessoas de fora, que a bondade mandava que se fornecesse à mulher o entretém para os dedos, de outra. Oh, de outra forma. Branca Volante passaria as tardes com o espírito além das parreiras. E o que se passasse no espírito nunca se poderia medir nem calcular. O dragão, pelo contrário, era um indicativo precioso. Note-se. Não só do tempo que tinha ficado disponível, como ainda da justiça usada na distribuição das tarefas. Porque se alguma coisa faltasse fazer, e as escamas do dragão crescessem. Ah dedinhos. Branca estaria a esquecer-se dos seus deveres, e forçoso seria fazê-la lembrar. Cinco dedos estampados na pele. Não era para doer. Era mais a marca e a lembrança.» (p. 36).
No entanto, após um casamento submisso de dez anos, Branca passa a viajar em pensamento graças aos seus poderes mágicos, e pode inclusivamente perscrutar a distância física, através da visão e audição: «A mão sobre a orelha. Havia tempo que ouvia os sons à distância. (…) Consigo ouvir animais, pessoas, rumorejo de folhas. Chego a ouvir as ondas. Este tam tam que vem e vai.» (pp. 48-49). Branca passará até a dormir, estranhamente, com os olhos abertos: «Branca fechou os olhos porque acordou.» (p. 51). Esta personagem feminina, enquanto detentora de capacidades mágicas, pode inclusivamente ser considerada como a responsável pela aparição da tal cobra voadora. Ao bordar o dragão na colcha, empreita que dura há dez anos, produto das tardes e que se arrasta pelo chão da casa, Branca começa a recear a sua própria criação pois sente-a mover-se pela casa como um monstro, uma assombração. Como se todo o tempo e energia que a mulher consumiu na sua feitura lhe tivessem conferido algum poder vital: «Agora o dragão começa a ter uma forma de verdadeiro animal réptil voante. Porque o contorno da asa cinza vivo se abre em leque no meio do pano e o corpo do bicho de escamas miúdas. (…) Sendo potente e metalizado enrosca pelo tecido, e as patas abertas parecem agarrar seres vivos.» (p. 88).
Cobras, dragões e o eclodir do sonho
É curioso atentar como o elemento do dragão invoca os contos de fada em que as jovens donzelas indefesas estavam presas numa torre e guardadas por um dragão, mas é também a própria Branca que cria a criatura que será também o seu carrasco… Essa colcha é, afinal, como uma criação artística com o poder de uma obra literária, investindo Branca de um poder que vai além das suas capacidades visionárias, imbuindo-a de uma nova força. A colcha simboliza assim, enquanto artefacto ou objeto estético, artístico, criado pelas suas próprias mãos, um processo de recuperação de poder e de apropriação da palavra como forma de libertação.
O leitor depara-se ainda com um crescendo da personagem que não só vai conseguir rebelar-se contra o marido, defendendo-se com um facalhão quando ele a ataca. Esta mulher vive ainda o presente concentrada nos seus pressentimentos de um futuro que ela prevê melhor: «em breve as camionetas vão começar a chegar abarrotadas de gente que há-de vir para me consultar. Sobre as suas vidas. Além de outras viaturas motorizadas, animais ferrados e gente de pé.» (p. 199). Essa previsão de Branca é, aliás, o único horizonte positivo que o romance deixa e permite antecipar o que está para lá do final do livro. Esta fé no porvir retrata ainda o sentir do povo português e retrata essa vivência particular que é uma espera sebastianista, pois apesar da Revolução do 25 de Abril continua-se a aguardar o cumprir de uma profecia que salve o país, simbolizada por essa cobra que depois de espezinhada levanta voo.
Os Memoráveis
Os Memoráveis, publicado em 2014 pela Dom Quixote, constitui «Uma revisitação literária aos mitos fundadores da Revolução e da Democracia». A obra integrou, anos mais tarde, a Coleção Essencial – Livros RTP, projeto cultural concebido pela RTP em parceria com a LeYa, sob curadoria do editor Zeferino Coelho.
Ao ler Os Memoráveis prevalece a sensação de um quase retorno ao “extraordinário” dos primeiros dois romances da autora, com uma aura fantástica, ou melhor, de realismo mágico. No conjunto da sua obra, este romance é provavelmente o que consegue uma prosa mais fluída, quase ininterrupta, em que a linguagem é reduzida ao osso, ao essencial, num registo próximo da oralidade. O romance foi, aliás, escrito em cerca de 6 meses, devido a esse «ritmo da urgência em dizer o essencial» (palavras da autora).
O coração do coração da fábula
Em entrevista, no ano da sua publicação, ao Cultura.Sul, Lídia Jorge declarou como foram várias as imagens que conduziram até à escrita deste livro:
«A mais antiga tem catorze anos. Remonta ao ano 2000. Nesse ano, o Suplemento literário do Público, que então se chamava “Leituras”, propunha a cinco jovens escritores portugueses, com menos de trinta e cinco anos, que escrevessem textos tendo por mote a revolução. Cada um a seu jeito, todos evitaram o assunto. A revolução de 1974 era-lhes alheia. Além disso, a imagem que ilustrava esse número, uma fotografia do checo Josepf Koudelka, “O olhar de Ulisses”, também me levou a pensar que um dia iria escrever um livro sobre esse tema. Guardei esse número muito bem guardado. Catorze anos depois, escrevi Os Memoráveis. Os protagonistas são jovens que nasceram depois do 25 de Abril e os memoráveis vêm apeados, e envoltos em arames, como na fotografia de Koudelka.»
Houve um processo de pesquisa, embora não sistemático, acumulando ao longo dos anos vários dados, como livros, artigos, documentários, entrevistas. Fez inclusive várias entrevistas e o contacto com determinadas figuras confirmava a sua ideia: «Era preciso escrever sobre o “Olhar de Ulisses” português.»
Um romance que, segundo a autora, não se pode definir como um romance historiográfico:
«Este romance é um híbrido, eu sei, tem uma parte que toca no histórico, mas eu escrevi sobre o momento da História em que os dados reais se transfiguram em lenda. Trata-se de um livro sobre uma mitologia. Escrevi sobre factos irreais para tentar atingir a realidade. O romance histórico ou historiográfico procura revelar dados reais. Seja como for, a base dos factos, essa corresponde ao real. Procurei criar uma mitologia sem mentir.»
Olhares e relatos em desconstrução
Lídia Jorge habituou-nos, nos seus romances, a uma jovem detentora de um olhar de uma certa ingenuidade ou inocência sobre o mundo. Quase sempre, no final do romance, perdeu-se essa inocência. Ana Maria, a Machadinha, como o próprio nome indica, revela-se uma surpresa na sua galeria de personagens, pois é uma mulher aparentemente fria, calculista, que desde o início do romance indicia não revelar tudo o que sabe (parecendo deixar a inocência para Margarida Lota). Este foi um processo consciente: «essa figura ambígua fazia-me falta. Eu precisava de alguém que ao mesmo tempo visse o que se passava de forma lúcida e ao mesmo tempo amasse profundamente o mundo que criara os elementos detestáveis. Essa ambivalência era-me fundamental. Ela surgia-me desde o início guardando esse segredo. A forma secreta como se desenrolava a sua paixão destroçada era-me muito importante. Não sei até que ponto essa dissensão interior faz parte da minha própria dissensão.»
No conjunto da sua prosa romanesca, é usual a autora partir, como acontece em A Costa dos Murmúrios, de um texto inicial, um relato oficial, que serve de chave, para depois ser desconstruído ao longo da narrativa. Aqui parece seguir-se um processo inverso, em que se parte da história já conhecida ou mitificada para aquilo que é realmente lembrado, terminando com o argumento enquanto “registo factual”:
Em Os Memoráveis, parte-se do mais claro para o obscuro que o mergulho na desrazão determina. Em A Costa dos Murmúrios, como diz, o processo é inverso.»
Memória e Liberdade
Quando inquirida à memória que tem do 25 de Abril, ou dos tempos vividos antes da revolução, a autora afirma:
«Escrevi dois livros sobre o tema, este e O Dia dos Prodígios, precisamente para dar eco dessa memória. O Antes e o depois. Talvez todos os meus livros sejam sobre esses dois tempos. Assumo-me como uma espécie de cronista do tempo que passa. E escrevo ficção porque não posso nem sei falar da realidade de forma direta. Toda a minha memória possível está nos livros que fui escrevendo.»
Até que ponto é que a Liberdade se reflete no seu ofício de escrita?
«A Santa Liberdade como dizem alguns, levou-me a escrever. Não sei se teria publicado se não houvesse liberdade. Talvez escrevesse sempre (…) Se não tivesse havido liberdade, se ela não tivesse chegado quando chegou, provavelmente não teria publicado nada, e talvez nem tivesse vivido para além dos trinta anos. É um assunto crucial, vivencial, que determina a vida desde o quotidiano e o íntimo ao amplamente social e literário.»
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