O recente caso da suspensão de 40 dias aplicada pela IGAS a um cirurgião do Hospital de Faro, após denúncias de uma médica interna, levanta uma questão crucial: como equilibrar a responsabilidade individual com a necessidade de aprendizagem e de transparência nos sistemas de saúde.
Os erros não podem ser trivializados. Mas a sua interpretação como falhas de carácter ou como tolerância sistémica corre o risco de reduzir uma realidade complexa a uma falsa dicotomia de “maçãs podres” versus “sistemas permissivos”.
É certo que existem exemplos trágicos de profissionais perigosos – como Harold Shipman ou Lucy Letby – mas são excecionais. A esmagadora maioria dos profissionais de saúde é competente, diligente e movida pela procura do melhor cuidado para os seus doentes. Quando ocorrem erros, estes resultam sobretudo da complexidade dos sistemas de prestação de cuidados e da falibilidade humana, não de uma alegada “má índole”.

Anestesiologista e Intensivista (Portugal e Reino Unido). Professor Auxiliar Convidado na Faculdade de Medicina e Ciências Biomédicas da Universidade do Algarve e Codiretor do Centro de Simulação Clínica
A coragem da colega Diana Pereira é um momento importante para chamar a atenção de todos
A teoria da Just Culture oferece aqui uma perspetiva mais equilibrada. Distingue entre:
Erro humano (lapsos, falhas não intencionais) → exige redesenho do sistema e aprendizagem, não punição.
Comportamento de risco (atalhos, deriva para práticas inseguras) → requer orientação, feedback e alinhamento de incentivos.
Comportamento temerário (desrespeito consciente pelo risco) → justifica sanção disciplinar proporcional.
O erro, por si só, não basta para concluir que existe falha de carácter. Deve, sim, desencadear investigação estruturada do contexto e do comportamento, em tempo útil, permitindo respostas justas e eficazes.
Do ponto de vista da análise sistémica, eventos adversos repetidos são sinais de condições latentes: falhas de supervisão, processos clínicos inadequados, cargas de trabalho insustentáveis ou culturas que desencorajam a denúncia. Atribuir toda a responsabilidade ao indivíduo é desperdiçar a oportunidade de corrigir estas falhas e aprender com elas.
Focar-se exclusivamente na culpa tem ainda consequências corrosivas: inibe a notificação de incidentes, deteriora a relação médico-doente (sobretudo quando o doente não é informado de que sofreu dano) e oculta os custos humanos profundos – para doentes, que podem carregar um fardo vitalício, e para profissionais, que frequentemente se tornam “segundas vítimas”, sofrendo grave impacto emocional e profissional.
Neste quadro, é essencial que os doentes tenham voz, quer através de sistemas acessíveis de participação, quer por mecanismos de feedback estruturados, como o Friends and Family Test. E, quando ocorre dano, existe um imperativo ético e moral – ancorado no princípio de primum non nocere – de o revelar de forma transparente e honesta. Só assim se restaura a confiança e se promove dignidade e respeito.
Conclusão
Avançar para além da culpa exige reconhecer que os erros médicos não devem ser reduzidos só a falhas individuais, mas entendidos como sinais que requerem investigação transparente, revisão estruturada e intervenção multinível.
Indivíduos: formação, apoio ou sanção proporcional ao comportamento.
Organizações: redesenho de processos inseguros, mudança cultural que favoreça a notificação, salvaguardas contra a deriva para práticas de risco.
Doentes: participação ativa em mecanismos de feedback e notificação, e acesso a informação honesta e clara quando ocorre dano.
A este quadro acrescem duas dimensões fundamentais. Primeiro, a necessidade de legislação eficaz para proteger os denunciantes (whistleblowers), assegurando que internos e profissionais possam relatar falhas sem receio de represálias. Segundo, a criação de modelos jurídicos mais céleres e simplificados, que dispensem a prova de culpa em situações de erro clínico inaceitável, mas objetivo (como instrumentos retidos ou cirurgia em local errado). Estes mecanismos permitiriam apoiar e compensar rapidamente os doentes, reforçando a confiança no sistema.
A coragem da colega Diana Pereira é um momento importante para chamar a atenção de todos para o que acima afirmo: não são só os profissionais de saúde que cometem erros, mas também os políticos e os gestores, que são parte integral do sistema. O sistema inclui procedimentos, condições de trabalho, constrições e prioridades que determinam a segurança dos doentes. É uma responsabilidade coletiva e exige uma mudança sísmica na relação tradicional entre estes componentes – mudança que requer coragem e empenho de todos.
Proteger o doente implica pôr fim à cultura do silêncio, do medo, da culpabilização e da ameaça. O erro clínico deve ser notificado, discutido e aproveitado para melhorar a prestação de cuidados, com base em princípios científicos sólidos sobre a influência dos fatores humanos no erro.
Essa notificação deve ser feita não apenas através dos sistemas clínicos, mas também perante o doente e familiares, com esclarecimentos e pedidos de desculpa sinceros. Tal como acontece com o consentimento informado, antes de qualquer procedimento os doentes devem ser rigorosamente informados dos riscos envolvidos, bem como das medidas operacionais existentes para reduzir a probabilidade de erro.
Finalmente, os conselhos de administração hospitalares devem, em conjunto com os diretores de serviço, assumir a responsabilidade final pela segurança do doente, estabelecendo uma cadeia de responsabilizações clara e inequívoca.
Errar é humano; mas persistir numa cultura de silêncio e culpabilização é falhar duplamente com doentes e profissionais. Só através de coragem, transparência e parceria poderemos transformar o erro em aprendizagem e em verdadeira proteção da dignidade humana.
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