Ter acesso a uma habitação condigna é hoje um dos maiores flagelos que atinge os portugueses e particularmente os algarvios. Numa altura em que o direito ao acesso da habitação está em causa como nunca, o Postal do Algarve assume a discussão desta problemática como uma das suas ‘bandeiras’. Nesta edição, procurámos respostas sobre o novo Simplex Urbanístico em entrevista ao urbanista António Nóbrega. Oportunamente, abordaremos o alojamento local e o seu impacto na economia.
Envolvendo a crise habitacional, o Simplex Urbanístico surgiu como um tema paradigmático da atualidade, polémico e frequentemente debatido. Na sua experiência como investigador e autor de centenas de publicações na área do urbanismo, considera esta matéria, tão determinante para a sociedade, que justifique o impacto que tem provocado a todos os níveis?
Este complexo regime jurídico regula o relacionamento entre o Estado e a sociedade, no âmbito da utilização do solo e dos edifícios.
Sabemos que o território representa o suporte de vida do ser humano. A forma como planeamos, gerimos e utilizamos o espaço, condiciona inevitavelmente, toda a nossa existência, desde a segurança, à qualidade de vida individual e coletiva. Trata-se de uma relação, frequentemente deturpada, entre “espaço e poder”.
Para se interiorizar, conscientemente, a importância do território, meditemos numa utopia… Israel foi, recentemente, atacado militarmente pelo Irão. A ameaça de uma 3ª Guerra Mundial torna-se uma realidade. Meditemos, então, na seguinte pergunta: se Israel e os países árabes unissem os povos, independentemente das fronteiras e se empenhassem pelo bem-estar de toda a população, qual seria o resultado? Assim, enfrentamos neste momento, um conflito sem precedentes, motivado pela sobrevivência, mas também, pela intenção de “dominar o território”, nele exercendo o poder exclusivo de cada um dos povos. Naturalmente, não nos sentimos inocentes ao ponto de presumir, ser este, um objetivo fácil de alcançar.
O mesmo acontece, entre a Rússia e a Ucrânia…
A cidade de Viena de Áustria foi recentemente considerada, pelo “Índice de Habitabilidade Global da Economist Intelligence”, a melhor cidade do mundo para se viver e porquê?
Claro que o território é fundamental ao nível internacional, no contexto da identificação de um país. Mas, considera que tem a mesma importância ao nível da microescala, no interior de cada país, região ou cidade, ou bairro?
Claramente! À escala nacional, regional, ou local, o planeamento equilibrado, a gestão do espaço onde vivemos, com os recursos disponíveis, ponderando as potencialidades a desenvolver, para sobrevivência e bem-estar da população, representam o suporte essencial da qualidade de vida.
Vejamos outro exemplo: a cidade de Viena de Áustria foi recentemente considerada, pelo “Índice de Habitabilidade Global da Economist Intelligence”, a melhor cidade do mundo para se viver e porquê? Porque, nesta avaliação, são ponderados critérios relacionados com a qualidade de vida, tais como, a segurança, as infraestruturas e superestruturas, o ambiente, a educação, a saúde, a dinâmica cultural, ou seja, os fatores de ponderação de bem-estar, sustentabilidade e equilíbrio, que dependem essencialmente, da qualidade dos mecanismos estratégicos, eficazes e eficientes, utilizados no planeamento e na gestão urbanística do espaço físico, seja este rural, ou urbano.
Significa isso, que as cidades com melhor qualidade de vida possuem planos bem elaborados e um sistema simples para licenciamento das construções, ao contrário do que acontece no nosso país, em que a aprovação do projeto de uma obra pode demorar vários anos. Existe uma relação, entre as regras dos licenciamentos e a qualidade de vida?
Seguramente! Vejamos a perspetiva inversa, pensemos no drama de quem habita as favelas, existentes no Brasil e outras aglomerações do género, em muitos países que enfrentam dificuldades no seu desenvolvimento.
Nesses locais, simplesmente, não existem planos nem regras de uso do solo. A administração do território abrange um extenso leque de matérias, tão sensíveis e determinantes como o problema habitacional, ou a sustentabilidade. Como prova, sabemos que, mais de 70 por cento da produção de gases com efeitos de estufa resulta do urbanismo mal gerido, que implica deslocações desnecessárias e a utilização de combustíveis, no aquecimento e refrigeração de edifícios, entre muitos outros erros na gestão urbanística.
Os simples gestos rotineiros, que nos passam despercebidos, representam resultados, que refletem a qualidade do planeamento e da gestão do território a que nos encontramos sujeitos.
Ligar o interruptor da eletricidade, quando ao fim do dia regressamos à nossa habitação; o tempo que aguardamos num hospital para atendimento na urgência; as vagas numa escola, creche ou lar de idosos; a intervenção da equipa dos bombeiros ou de emergência; os minutos de espera num semáforo… representam pormenores que refletem a qualidade, a eficácia e a eficiência do sistema de gestão urbanística, incluindo a prevenção ou a reação a uma catástrofe.
Não nos podemos esquecer que o país dispõe de fogos para mais de 12 milhões de habitantes e que cerca de 12% das unidades disponíveis – mais de 700.000 – estão vagas ou para venda. A população portuguesa ronda os dez milhões de habitantes. Isto significa que as políticas habitacionais implementadas até ao momento, não resultaram como esperado
O Simplex Urbanístico implementa, efetivamente, transformações importantes na administração do território, no âmbito da crise habitacional, ou não passa de mais um conjunto de regras representando “intenções” do legislador?
A crise habitacional está, seguramente, relacionada com a burocracia excessiva na legislação aplicável à elaboração e apreciação de projetos e para a realização de obras. É um facto.
Mas não nos podemos esquecer que o país dispõe de fogos suficientes para mais de 12 milhões de habitantes e que cerca de 12% das unidades disponíveis – mais de 700.000 – estão vagas ou para venda. A população portuguesa, ronda os dez milhões de habitantes. Isto significa que as políticas habitacionais implementadas até ao momento, não resultaram como esperado.
No entanto, não nos podemos esquecer, que a construção civil representa um fator de progresso e desenvolvimento estrutural em toda a vida da sociedade, inclusivamente, na resolução da crise habitacional.
Basta ter em consideração o extenso leque de profissões e atividades envolvidas na construção civil, desde as entidades bancárias, ao fabrico, distribuição e instalação de todos os materiais e serviços envolvidos. As atividades económicas, sem exceção, dependem de títulos – alvarás – resultantes de operações urbanísticas, que o Simplex Urbanístico veio “dispensar”, nas transações. De qualquer forma, não será possível admitir, por exemplo, que a utilização de um estabelecimento dedicado ao serviço público alimentar, não cumpra as exigências mínimas de segurança e salubridade.
Nesse caso, de que forma será garantida a segurança e a saúde pública nos edifícios e no funcionamento dos estabelecimentos que apresentem riscos, ou na eventualidade de ocorrer um sismo ou uma catástrofe climática, como tem acontecido com frequência noutras partes do globo?
O legislador implementou novas regras procedimentais em relação aos projetos de obras e na utilização de edifícios. Primeiro, simplificou ou eliminou mecanismos de controlo municipal de projetos, para construção civil ou utilização de edifícios. Como regra, as câmaras municipais só apreciam projetos em casos excecionais.
Entre as alterações, o Governo, “reconstituiu” a figura do deferimento tácito, ou seja, caso a câmara municipal não aprecie o projeto no prazo estabelecido, este será considerado aprovado tacitamente. O controlo desses prazos será da responsabilidade da AMA – “Agência da Modernização Administrativa” e não da autarquia, que emitirá uma certidão, confirmando o ato tácito.
Será criado um sistema informático nacional, para regulação das operações urbanísticas e para informação aos interessados.
O poder de decisão das câmaras municipais para apreciação de projetos será limitado a regras objetivas constantes na lei ou em planos municipais.
Acredita então, que o Simplex Urbanístico produzirá efeitos, acelerando os processos apresentados às câmaras municipais e contribuindo para o desenvolvimento da economia e minimizando os custos de contexto para o cidadão e para as empresas?
Não me parece, que de imediato, venham a surgir benefícios relevantes a favor da desburocratização e da simplificação que todos pretendemos. O Simplex implementado passará por um período de adaptação, mas surgirão reflexos da nova dinâmica implementada.
Apesar de terem ocorrido inúmeros eventos, vocacionados para a abordagem, discussão e esclarecimento desta nova legislação, temos consciência de que as câmaras municipais enfrentam grandes dificuldades na implementação destas medidas inovadoras. Muitas já reconheceram publicamente, que não será fácil proceder à adaptação dos seus serviços às imposições legais em vigor, com o Simplex.
Por outro lado, os projetistas e os técnicos responsáveis pelas obras, os notários, os conservadores e até os bancos, estão a manifestar apreensão, ao lidar com a responsabilidade que lhes será atribuída pela simplificação. Ou seja, as autarquias não apreciarão os projetos, mas a lei deverá ser cumprida em todas as situações e nestes casos o cumprimento das normas será garantido pelos termos de responsabilidade, subscritos pelos técnicos autores dos projetos ou diretores das obras. Não nos esqueçamos que a legislação aplicável à construção civil e utilização de edifícios envolve cerca de 2.500 diplomas legais.
Os bancos poderão vir a financiar a construção de edifícios – ilegais – ou seja, que não cumpram as disposições legais aplicáveis, situação que poderá vir a ser suscitada, muito tempo após a construção e a transação… criando conflitos que, como tem acontecido no passado recente, poderão levar à demolição das construções.
Em conclusão, qual a sua opinião? O Simplex Urbanístico, contribuirá para uma melhoria na apreciação dos projetos e desenvolvimento da economia ou não?
Penso que as leis poderão contribuir para uma melhoria, abrangendo todo o processo de gestão urbanística.
A simplificação e a desburocratização representam imposições incontornáveis, exigidas pela sociedade moderna.
Este sistema simplificado, e responsabilizando os atores, funciona em muitos outros países. Porém, quem aplica a lei e produz as mudanças, são as pessoas. As leis por si só, não resolvem os problemas dificilmente modificam atitudes.
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