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Natural de Conceição de Tavira, Algarve, antropólogo e professor (agricultor de vez em quando e exorcista de palavras inúteis). Um homem como outro qualquer com tendências para o silêncio e para a misantropia. Leitor compulsivo, tem com lema de vida -«nunca incomodar». Já disseram que é um autor conotado com a corrente literária barroco-surrealista. Editou: – Transeuntes (contos); Partículas (poesia); passagem através do fogo ( estórias do quotidiano); A Leste de Tavira (monografia etno-histórica); Uma mulher Disponível (conto); Exilados (conto); Espuma Evanescente (antologia breve); Poema Falido (folha volante); Cicatrices (contos e alegorias); Escaras (poesia); Danças(?) (poesia).
Como é o quotidiano do teu poeta….
Sou um observador de tudo o que mexe e do que está parado. Posso ficar longos tempos num café, na praia, a uma janela, a ver a fauna que passa. E isso, de vez em quando, dá-me bons motivos para escrever: um cão que passou com o dono, um tipo alto com chapéu estranho, uma mulher da Serra que transporta um cesto, uma mota barulhenta, enfim, coisas sem aparente interesse que despoletam em mim qualquer química que me leva à escrita. Como se vê, não tenho quotidiano de poeta.
Consegues nomear um livro e um poema de tua autoria que possa ter sido mais relevante por qualquer razão….
‘Transeuntes’, o meu primeiro livro. Nunca mais escreverei como naquele livro. E depois… bem, depois, são textos da juventude…
Não sou um poeta, no sentido clássico: escrevo poesia por oportunidade, facilidade instrumental e por questões de tempo -, é complicado escolher. São tão diversos e abordando tantas temáticas que se torna impossível escolher um por preferência. Mas, referiria o poema “Poema Falido”, aliás publicado a solo na editora Canal Sonora, num formato de folha volante, ou, completamente diferente, o poema “Esta é a tua nova casa”, na antologia “12 Poetas A Sul Do Século XXI”.
Autores que gostas ou que possas dizer que te inspiram a escrever?
Não posso estabelecer uma relação direta entre autores de quem eu gosto e a forma como escrevo, mas alguma coisa devem influenciar.
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Eu sou um leitor compulsivo desde miúdo, quando esperava ansiosamente pela visita à minha aldeia da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian, e levava o máximo de livros que eram permitidos levar de cada vez. Mas sempre leitor de prosa. De romances e histórias de aventuras. E continuo assim: pouco leio poesia. Embora goste muito de Pessoa, de Rimbaud, Al Berto, Baudelaire, Herberto, ou, os nossos Ramos Rosa e Aleixo, continuo a ter como grandes referências romancistas ou contistas, nomes como Edgar Allan Poe, Boris Vian, Jonh Steinbeck, Albert Camus, Nuno Bragança, José Saramago, António Lobo Antunes, Jonathan Franzen, Jorge Amado, Gabriel García Márquez, Haruki Murakami, esquecendo-me, certamente, de outros que me marcaram e marcam ainda. Posso ainda dizer, aqui que ninguém nos…lê, que sou um doido pelo Nietzsche. Leio tudo o que o homem escreveu. Às vezes não percebo muito. Mas o que é que isso interessa?
Como passa a tua poesia para a escrita?
Porque não tenho muito tempo para escrever, ainda escrevo muito no papel. Em folhas soltas, guardanapos e toalhas de papel de cafés e restaurantes, e em pequenos blocos de apontamentos. Como dizia anteriormente, a ocasião faz o… escritor. Depois, na passagem para o digital, faço a revisão dos textos. No entanto, já consigo escrever diretamente no computador quando tenho tempo para me abalançar em longos textos. O word é parecidíssimo com a máquina de escrever: Suporte branco à frente e teclado. Até já chego a escrever no telemóvel…
Quando mais escreves?
Infelizmente, quase só escrevo no Inverno. Preciso de chuva, frio, de dias sombrios e, mesmo, de tempestade para escrever. O que é uma pena: já escrevo pouco e, ainda por cima, só numa época do ano. Ando a ver se me aventuro nos dias mais claros, mas a coisa não tem sido fácil. Talvez por isso a minha escrita seja tão agreste, rude, triste e sombria.
Vícios, manias e outros segredos relacionados com a tua escrita …
Andar sempre com um bloco de apontamentos para tirar notas. Meter “buchas” no texto já preexistente: escrevo, escrevo, escrevo e, depois de uma narrativa já estruturada e consistente, vou introduzindo pequenas frases nesse texto como que a dar-lhe espaço, textura, respiração. Às vezes mudando mesmo o sentido do texto original. Uma espécie de enxertia no tronco genético. Já a poda, o deitar fora e cortar, me custa muito. Tudo aquilo que está no papel, afinal, faz Um poema….
Nunca fomos a Veneza
Estamos sempre a mudar como as serpentes.
Não iremos percorrer as margens lamacentas
Do rio Mekong onde o sangue coagula nas lamas
Envenenadas. Tenho medo de viajar de avião
E tu cansas-te quando a casa se afasta de nós.
Iremos a Cádis: ver o pôr-do-sol e comer salmorejo
Numa rua estreita atrás da catedral. Beber tinto de verano
E cañas com algas do golfo magrebino. Para o ano iremos a Veneza.
É um sonho antigo que a vida tem atirado para o futuro.
Atravessaremos Espanha, França e Itália de automóvel
E chegaremos à cidade dos canais no Verão. Seremos turistas
Como milhões, mas seremos nós a construir o nosso roteiro.
Dormiremos onde calhar e comeremos o que nos apetecer.
Seremos só nós e não conheceremos ninguém. Nas viagens
Só se conhecem cromos e palermices exóticas. As pessoas
Normais detestam estranhos e repelem-nos como bactérias
E vírus que atacam um corpo. Transportamos a nossa condição
De doentes de amor sem que os outros nos perturbem com
Mesinhas salvíficas: a doença faz parte de nós
Como caminhantes duma estrada sem fim.
Estamos sempre a mudar como serpentes.
Nunca iremos a Matchu Pitchu. A montanha é abrupta e o mar imenso.
Sonharemos nas praias do mediterrâneo próximo onde
As autovias nos tragam depressa a casa. Para comer iogurtes
Que fazes na bimby, dormir no nosso colchão de aloé vera
como se não houvesse mais nenhum dia. Abrir a janela
pela manhã e deixar entrar a buganvília roxa e a pimenteira bastarda.
Ouvir o rumorejar do Levante na costa.
Nas ruas desertas conheceremos o que os outros nunca viram.
Subiremos as ruas para a Alhambra e beberemos
A água da fonte das laranjeiras da mesquita de Córdoba e voltaremos
Na urgência dos corpos que se cruzam nas noites
Ardentes do Verão. Viajaremos para lá dos séculos,
Das linhas que os roteiros turísticos nos traçam nas mentes burguesas.
Um dia iremos a Veneza.
Hoje, beberemos uma imperial preta no REF enquanto Tavira
Se liberta dos pesadelos de Agosto.
Cativa, 28 de agosto de 2016
(Artigo publicado no Caderno de Artes Cultura.Sul)