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Investigadora na área da Sociologia
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A crónica de Agosto pretende fazer jus ao nome desta rubrica: “Marca d’água”. Iniciada em Junho, a convite do Jornal Postal do Algarve, teve como escolha esta designação pelo facto das questões ligadas à água me interessarem particularmente, e porque se cruzam com as minhas áreas académicas: sociologia da cultura e das religiões, sociologia rural e urbana.
Sucintamente pode dizer-se que água está sempre presente ao longo da história da humanidade. Os rios eram como deuses na antiguidade clássica e considerados sagrados como ainda acontece com o rio Ganges, na Índia. De uma forma muito simples: dos quatro elementos da natureza – água, terra, fogo e ar – a água é dos elementos que mais “mexe” com a vida, com o sentir, com a emoção…
A água como fonte de vida está referida em todos os compêndios e livros sagrados. Por exemplo, na Bíblia aparecem mais de trezentas referências à água, e com forte simbolismo, como se pode ler no Evangelho de S. João: “Do seio daquele que acredite em Mim, fluirão rios de água viva, como diz a Escritura” (Jo 7, 38)
Uma Nova Cultura da Água
Em 2011 participei no Congresso Ibérico da Água, em Talavera de la Reina (Toledo), no âmbito da investigação sociológica sobre os estrangeiros que vivem em barcos no Rio Guadiana.
No Congresso conheci o Professor Francisco Javier Martínez Gil. Catedrático de Hidrogeologia na Universidade de Salamanca e na Universidade de Zaragoça. Doutorado em Hidrologia pela Sorbone e em Geologia pela Universidade de Barcelona, ou seja, um homem de ciência, que dedicou grande parte da sua vida ao estudo dos rios nos seus aspectos técnico-científicos. No final da sua carreira académica centrou-se num outro olhar sobre os rios e aí está a grande surpresa que tive durante este Congresso em Espanha.
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Ao ouvir a expressão “Uma Nova Cultura da Água” percebi que uma outra dimensão, diferente da que estava a ouvir nas várias comunicações, seria apresentada. E assim foi, o Professor Francisco Javier Martínez Gil defende que Uma Nova Cultura da Água passa por uma profunda alteração de valores, inspirando-se na ética ecológica e na cultura da sustentabilidade. Refere ainda que “para se conseguir uma implicação real e positiva dos actores sociais na promoção de um uso sustentável da água e conservação dos ecossistemas fluviais, não são suficientes iniciativas legais e técnicas, mas é essencial contar com ferramentas efectivas de carácter social como a educação ambiental, a comunicação e a participação, enquanto estratégias que ajudem a promover a extensão social da Nova Cultura da Água”.
E entra naquilo a que chama uma hidrologia “holística” ao dizer que se trata de uma cultura que é uma fonte de luz para o conhecimento humano, na qual os rios são um meio onde experimentar um novo sentido de progresso e de bem-estar. Refere ainda que “a ciência sem coração corre o risco de acabar numa ‘sem-razão’ (…) ou num simples entretenimento pessoal”. Acrescenta que “a gestão da água exige uma visão humanística com abordagens que possam ir para além de uma visão mesquinha do desenvolvimento económico, cego pelo produtivismo”. E remata com esta frase: “Falta-nos mais cultura e sensibilidade do que água!”.
Fiquei a conhecer a Fundação Nova Cultura da Água que defende um novo olhar sobre a água, em especial, sobre os rios e que tem a “missão de transmitir conhecimento e valores humanos para promover a adopção de Uma Nova Cultura da Água, entendida como uma mudança de paradigma para a sustentabilidade ambiental, económica, social e cultural”.
Fluviofelicidade e poesia
Foi o Professor Francisco Javier Martínez Gil que criou o conceito de fluviofelicidade referindo que este está ligado a uma sensação de bem-estar a partir do contacto com os rios e que estes devem ser vistos a partir do mundo dos sentimentos. Sempre com a consciência de que a água é o líquido mais precioso e que mais condiciona o nosso futuro.
Vê os rios como “uma força de bem-estar integral e uma força positiva que humaniza a existência e gera harmonia levando-nos a reconciliar connosco próprios e com os outros”.
Gostei imenso do que aprendi neste Congresso e fui estudando, vivendo a temática da fluviofelicidade e fazendo uma ligação com o mundo poético. Acredito que a água e os rios em particular sempre inspiraram os poetas. Estar perto de um rio não nos pode deixar indiferentes, e quando nos deixamos levar por essa corrente, que é a poesia, abrem-se caminhos inesperados…
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A água desperta emoções e viver junto de um rio é ter um manancial aos nossos pés… que nos envolve até à cabeça… passando pelo coração… por isso “a poesia diz sempre mais do que diz”, porque ela é uma experiência única de encontro de quem escreve consigo mesmo e pode ser tão fluída e profunda como um rio.
Esta vivência poética levou-me a apresentar uma comunicação intitulada Fluviofelicidade e a influência dos rios na poesia dos poetas algarvios, na Biblioteca Municipal de Tavira no âmbito do Encontro ARMA PALAVRA / Palavra Ibérica que decorreu em Abril de 2011.
Não irei reproduzir o que disse nessa data, mas destaquei poetas que têm referências concretas aos rios, tais como Casimiro de Brito, Teresa Rita Lopes, Carlos Brito, Fernando Cabrita, entre outros.
Sinto sempre que um rio é um mistério, tem rios dentro de si. Ligado a cada rio há um mundo de emoções, um património de memória, de cultura e identidade e é isso que a hidrologia científica ignora. Para sentir os rios é preciso abeirar-se deles, vê-los por fora, senti-los por dentro e essa é uma experiência fluviofeliz!
Ao observar os modos de vida dos estrangeiros que vivem em barcos e conversar com eles, percebi que vivem uma certa fluviofelicidade e enquadrei este conceito no estudo.
Fluvioabraço
Não poderei deixar de referir mais uma surpresa do Congresso que foi a oferta aos participantes, de um livro intitulado Una Nueva Cultura del Agua y de la Vida: la experiencia fluviofeliz, da autoria de Francisco Javier Martínez Gil e editado pela Fundacão Nova Cultura da Água.
Fala dos rios a partir do mundo das emoções. É um pequeno livro, repleto de enormes abraços. Tem algumas páginas dedicadas ao fluvioabraço, em que é referida “a vivência metafísica do rio” e a filosofia de afecto num vínculo emocional do ser humano com a água. Refere Francisco Javier Martínez Gil que não há nenhum outro componente na natureza com que o ser humano tenha uma ligação emocional tão forte, tanto no plano cultural, simbólico, sensual ou lúdico. “A experiência fluvial no clima humano da fluviofelicidade facilita a aprendizagem do fluvioabraço; desbloqueia o nosso mundo dos afectos.”
E porque a poesia é como um rio que nos corre nas veias… partilhando o fluído das suas palavras… deixemos que neste Verão, a morfologia cristalina da água e a gramática profunda dos rios nos levem por outras navegações… ao encontro da poesia que há em nós…
Um abraço fluviofeliz!
Esta crónica foi escrita com base nos apontamentos que tirei durante o Congresso de 2011 e com base no livro editado em 2010 pela Fundação Nova Cultura da Água, acima mencionado.
(Artigo publicado no Caderno de Artes Cultura.Sul)