Julgar sem compreender é o erro mais frequente e publicitado. Os fenómenos humanos são normalmente analisados pelo olhar e valores de cada época.
A relação milenar entre homens e animais apresenta expressões mágico-religiosas, simbólicas, necessidades de subsistência e económicas. Mauss e Hubert analisaram a função sócio-religiosa do sacrifício, Freud acrescentou-lhe o banquete comunitário.
A origem das touradas como manifestação da herança cultural mediterrânica interessa à investigação, surgiram diversos trabalhos de antropologia cultural e de outras ciências.
Mito e realidade reencontram-se na morte, o touro é um animal lúdico e poderoso que pode matar o homem, acontece nos campos e arenas
Arqueólogos do período pré-histórico encontraram em grutas e rochas desenhos de bovídeos e equídeos, bisontes e auroques, os touros da época e interrogaram-se.
A “taurocatapsia”, tauromaquia em grego, aparece relacionada com a religião e o jogo, festividades e cultos ritualizados, acompanham as estações do ano e as actividades agro-pastoris.
Na cosmologia antiga surgem divindades metamorfoseadas de touros. Europa foi raptada por um touro que era Zeus, da relação nasceram Minos, Radamanto e Sarpedão… No palácio de Cnossos em Creta, 2000 a.C., mítico refúgio de Minos, governador da ilha e de mundos subterrâneos, sobreviveu um mural da arte minoica representando um salto acrobático de um jovem sobre um touro, outro segura-lhe os cornos, um terceiro está na rectaguarda. Autores referiram analogias entre o mural cretense e a tourada ibérica.
Mito e realidade reencontram-se na morte, o touro é um animal lúdico e poderoso que pode matar o homem, acontece nos campos e arenas, deve ser sacrificado e em diversas festividades populares a refeição comunitária do touro constitui uma convivialidade ritual.
A evolução dos rituais populares taurinos para o espectáculo actual durou séculos, com acesos debates e conflitualidades políticas. O Papa Pio V, mentor da Santa Liga que em Lepanto venceu os otomanos, decretou em 1567 uma bula de excomunhão dos católicos que praticassem ou assistissem a touradas, revogada anos depois pelo Papa Gregório XIII, que em 1582 estabeleceu um novo calendário, designado por gregoriano.
Em 1836 Passos Manuel secretário de Estado de D. Maria II decretou a “proibição das corridas de touros em todo o Reino”, a norma revogada por pressão de beneficiários, Misericórdias e Casa Pia de Lisboa, decisão das Cortes. Na I República em 1919 ocorreu nova proibição das touradas, Decreto de 10 de Maio, não cumprido e revogado.
A morte do touro nas festas de Barrancos foi objecto há 25 anos atrás de intenso debate mediático e político. A Assembleia da República em 17 de Julho de 2002 decretou o regime de excepção e a legalização da corrida “à espanhola” nas festas barranquenhas.
Na história cultural portuguesa encontramos manifestações taurinas de características diferenciadas, chegas de bois no Barroso, o forcão e a capeia em aldeias da Serra da Estrela e no Sabugal, a vaca de fogo no Douro litoral, a tourada à vara larga na Beira interior, a tourada à corda nos Açores e em Ponte de Lima, largadas de touros nas ruas das vilas do Ribatejo, corridas com a morte do touro no Alentejo em zonas raianas…
A Capeia Arraiana, do concelho do Sabugal, foi registada em 2011 como Património Cultural Imaterial no Inventário Nacional do Instituto dos Museus e da Conservação (IMC), “enquanto manifestação popular e etnográfica”, contudo nenhum Estado apresentou à UNESCO a candidatura da tourada à inscrição na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade.
Subsiste o debate sobre a origem do touro bravo, com argumentos de sobrevivência da espécie no ecossistema natural, outros a manipulação genética. Na Península Ibérica desenvolveu-se uma microeconomia de criação de touros bravos em ganadaria, com empresas de organização de espectáculos taurinos e profissionalização de toureiros, são do séc. XX a maioria das praças de touros portuguesas (76), poucas as do século anterior.
Os argumentos morais ou da tradição, não ocultam interesses económicos das culturas urbanas, massificadas pelas indústrias culturais e turísticas de matriz anglo-saxónica. Evidente a desvalorização e artificialização de valores e práticas culturais das sociedades agrárias, de enorme riqueza cultural e patrimonial, comunitárias e conviviais.
Segundo a FAO, o consumo mundial de carne de produção e abate industrial duplicou nos últimos 20 anos, prevendo significativo aumento até 2030, a China é dos maiores importadores.
Fenómeno urbano de mutação dos estilos de vida é a “economia pet” de produtos para animais de companhia. Famílias nucleares e monoparentais, idosos a viver sós, acedem a “produtos e serviços pet”, rações vitamínicas, clínicas, alojamento para férias, roupas, cosméticos, oferta de “pet sitter”, há “pet influencers” com milhões de seguidores…
A Bloomberg estima que nas sociedades urbanas com elevado poder de compra, a “pet economy” crescerá 60% até 2030.
A ONU em 2024 mostra-nos a realidade, que 27,9% das crianças do planeta vivem em situação de pobreza, subnutridas e em situação deplorável.
São contradições chocantes num mundo dito globalizado, dirigido por interesses financeiro- tecnológicos, desatento aos direitos humanos, ambientais e da biodiversidade, onde se inclui o respeito pelas espécies, que não pode ficar pelos animais domésticos.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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