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Consultora Filosófica
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Quem nunca ouviu falar das tertúlias realizadas em cafés? Famosos nos finais do sec. XIX e princípios do sec. XX os cafés e, no caso francês também os cabarés, reuniam os artistas e intelectuais da época. Se em Paris o Le Chat Noir congregava figuras como Debussy, Satie, Verlaine ou Strindberg; em Lisboa os cafés do Nicola à Brasileira acolheram personagens tão ilustres como Bocage, Alexandre Herculano, Almada Negreiros, Mário de Sá Carneiro e Fernando Pessoa.
Normalmente, as tertúlias versavam sobre temas literários, artísticos ou políticos. Não acontece exactamente assim com o Café Filosófico. Embora o tópico sobre o qual decorre a sessão possa ser comum ao de alguma tertúlia, o Café Filosófico segue os passos de Sócrates. Este filósofo ateniense do sec. IV a.C nada escreveu. Passeava pelas ruas, pelos mercados e conversava com as pessoas. No decurso da conversa, o interlocutor, invariavelmente introduzia uma pseudo-compreensão, isto é, qualquer coisa que julgava saber mas que, quando tomada com mais atenção, exibia a ignorância até então camuflada. Santo Agostinho (354-430) nas Confissões dá-nos um bom exemplo disto: “O que é o tempo? Se ninguém mo perguntar eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.” De facto, todos lidamos com o conceito de tempo de forma despreocupada. Mas se quisermos definir com rigor o que é o tempo, entramos em dificuldades. Sócrates era um especialista em reconhecer a doxa; era um excelente pescador de pseudo-compreensões. Claro que isto não o tornou popular… Quando estamos convencidos de que sabemos, não é lá muito agradável que alguém nos venha mostrar que, afinal, não sabemos. Como diz o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961): “Sempre culpado por excesso ou por defeito, sempre mais simples e menos sumário do que os outros, mais dócil e menos acomodatício, causa-lhes mal-estar infringe-lhes esta imperdoável ofensa de os fazer duvidar de si próprios.” (Elogio da Filosofia) De facto, Sócrates “moscardo”, alcunha que obteve graças à tamanha ferroada intelectual que era capaz de infringir no seu interlocutor, acabou condenado à morte.
Será a filosofia uma actividade perigosa?
O primeiro Café Filosófico surgiu em França em 1992 no Café de Phares em Paris, iniciativa do filósofo Marc Sautet (1947-1998), e continua activo nos dias de hoje. Pioneiro neste domínio da Prática Filosófica, Sautet escreveu o livro Um Café para Sócrates publicado em 1995. A sua ideia espalhou-se rapidamente pelo mundo, o que ajudou a desmistificar a filosofia trazendo-a para fora dos muros da Academia, reconduzindo-a ao seu lugar de origem: a rua socrática. Uma rua onde se fala, onde a oralidade domina. E urgem espaços de palavra viva porque “a filosofia livresca deixou de interrogar os homens. O que nela há de insólito e de quase insuportável está escondido na vida decente dos grandes sistemas. (…) A vida e a morte de Sócrates são a história das difíceis relações que o filósofo que não é protegido pela imunidade literária, mantém com os deuses e a cidade, isto é, com os outro homens e com o absoluto imobilizado cuja imagem lhe apresenta”. (Ibid.)
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No mundo moderno a rua está cheia de veículos motorizados, poluentes e barulhentos. A conversa mudou-se para o café. No entanto, esta não é uma simples “conversa de café” a bem do rigor, o Café Filosófico exige um moderador qualificado que seja, pelo menos, licenciado em filosofia. O moderador tenta que os participantes vão além doxa, o mero discurso opinativo ou das ideias mal alicerçadas, promovendo a gestação de um pensamento fundamentado, lúcido e responsável. Mesmo que para tal se requeira, de quando em vez, uma ferroada!
Nas tintas para o bem-estar?
A ferroada deixa-nos sem chão. E não conseguimos caminhar sem ele, por conseguinte, somos obrigados a procurar. Este é o momento fulcral incontornável, a tensão intelectual está ao rubro e não se pode fazer outra coisa senão procurar, procurar, procurar! “Ora hoje, quase não se procura. ‘Regressa-se’, ‘defende-se’ uma ou outra tradição. O nosso pensamento é um pensamento aposentado ou enrugado. Todos expiam a sua juventude. Esta decadência está de acordo com o processo da nossa história. Passado um certo ponto de tensão, as ideias deixam de proliferar e de viver, caem no plano das justificações e dos pretextos, tornam-se relíquias, pontos de honra, e aquilo a que pomposamente chamamos o movimento das ideias reduz-se ao conjunto das nossas nostalgias, dos nossos rancores, dos nossos acanhamentos, das nossas fobias.” (Ibid.)
Se se quiser realizar um esforço sincero sobre o que há a saber sobre o que quer que seja para depois tomar uma atitude, fica-se condenado à indecisão, à atrapalhação e, provavelmente, à imobilidade. Este constitui um exemplo de um dos modos de escondimento de que padece o humano: a impossibilidade de tomar em consideração todas as hipóteses alternativas, agravado pela circunstância de o ponto de vista não possuir com respeito a si próprio uma medida justa da sua incapacidade de as colocar, quer dizer, mesmo reconhecendo que nos escapam algumas hipóteses a considerar, o volume das que se ocultam é, na realidade, muito superior ao que de princípio supomos.
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Posso reconhecer facilmente que a não admissão de todas as possibilidades alternativas a tomar em conta sobre um assunto determinado me induz, seguramente, em erro. No entanto, este procedimento que actua como um mecanismo de simplificação –de todas as possibilidades a considerar elegem-se intuitivamente algumas cuja possibilidade de apreciação se considera averiguável – parece estar estreitamente relacionado com a sobrevivência.
Este fenómeno, quando tomamos verdadeiramente consciência dele, atira-nos para um estado de inquietude. Levado mais a sério pode mesmo provocar um perigoso esmagamento do ponto de vista. Que se saiba não existe ainda solução para este problema da sistemática elisão das possibilidades alternativas.
É aqui que a Filosofia se distingue de outras matérias. A Filosofia não é “Coaching” nem “Auto-ajuda” nem “Programação Neurolinguística”, nem nenhuma outra técnica “New Age” que, em apenas meia-hora (bem paga decerto) promete resolver todos os problemas do indivíduo e deixá-lo com uma agradável sensação de bem-estar. A ambição da Filosofia não é fazer-nos sentir bem!
O Filósofo ama a verdade. E se ao tentar alcançá-la ficar sem chão debaixo dos pés esse é um risco que está disposto a correr. A filosofia é para os audazes! Não é um sofá mental e emocional. É duro descobrir uma pergunta para a qual não se tem resposta e permanecer com ela; não desistir dela por mais que incomode. Os participantes do Café Filosófico entregam-se de corpo e alma à procura, mesmo que doa! São gente corajosa e resiliente cuja sede de saber se sobrepõe ao desejo de conforto.
Será o caro leitor uma alma afim? É daqueles cuja inquietude assalta? Então venha daí… Tome um café connosco!
(Artigo publicado no Caderno de Artes Cultura.Sul)