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Os militares da GNR suspeitos de torturar imigrantes em Odemira em 2018 e 2019, e que foram alvo de investigação da PJ de Setúbal, terão agido com “à-vontade” porque seriam “protegidos” pela hierarquia mais direta.
Duas fontes envolvidas no processo garantem ao Expresso que, embora não houvesse qualquer ordem de serviço por parte dos comandantes dos postos de Odemira e de Vila Nova de Milfontes, aos quais pertenciam os guardas, havia “indicações tácitas” para durante as patrulhas “meterem na linha” os imigrantes de origem hindustânica que trabalham aos milhares nas estufas da Costa Vicentina.
Ordem dos Advogados divulga relatório sobre migrantes em Odemira: “Problema seríssimo de potencial violação de direitos humanos”
A Ordem dos Advogados (OA) considera que “existe um problema seríssimo e preocupante de potencial violação de direitos humanos com a população migrante” em Odemira que ainda não está resolvido.
A conclusão é de um relatório que divulgou esta sexta-feira na sequência da notícia sobre a acusação de sete elementos da GNR de um total de 33 crimes, por humilharem e torturarem imigrantes nesta região. “Para a OA toda esta situação vai contra a própria Constituição da República”, lê-se no comunicado que foi enviado ao Expresso no qual a Ordem dos Advogados repudia a situação dos migrantes.
Tortura de imigrantes em Odemira: Cinco dos sete militares da GNR estão a “trabalhar normalmente”
Em resposta, a OA divulgou um “relatório elaborado pela Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados (CDHOA), que em maio passado, e na sequência da cerca sanitária imposta pelo Governo, se deslocou à região para in loco aferir das condições de habitabilidade e sanitárias disponibilizadas aos trabalhadores agrícolas afetados pelo surto que ali ocorreu”.
O documento afirma que “a CDHOA constatou a existência de situação precária e de exploração laboral de trabalhadores rurais estrangeiros potencialmente ilegais, no Concelho de Odemira evidenciadas pelas condições degradantes e miseráveis de alguns trabalhadores agrícolas ali a residir”. Esta instituição terá alertado “diversas entidades sobre as mesmas” e procedido com “várias diligências com entidades governamentais para resolver esta situação, mas sem muitas respostas às solicitações”.
MIGRANTES NÃO TÊM ACESSO A DIREITOS BÁSICOS E VIVEM SEM “QUAISQUER CONDIÇÕES”
A partir do terreno, a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados traçou um perfil dos migrantes em Odemira, concluindo que a maioria é oriunda do “Paquistão, Índia, Bangladesh e Tailândia, entre mais de vinte nacionalidades”.
Segundo o documento, “são recrutados por intermediários que fazem a ligação dos mesmos, com empresas de trabalho temporário no concelho” e representam “uma média de 6000 a 13.000 pessoas, fixadas naquele local”, embora o número varie com as temporadas agrícolas. “Apurou-se também que alguns dos migrantes, já estão radicados no concelho e têm inclusive, os filhos menores matriculados em escolas do concelho.”
O acesso à saúde por parte destes migrantes é um dos problemas sublinhados pelo relatório. Este “não é garantido, uma vez que quando os mesmos chegam não têm documentos que lhes possibilitem o acesso ao SNS ou a quaisquer ajudas da segurança social ou outras entidades, que têm direito, mas que por desconhecimento e por não deterem alguma documentação, tais direitos lhes são preteridos, mesmo que constitucionalmente garantidos”.
O CDHOA atribui esta precariedade de acesso aos serviços à “carga burocrática excessiva nas entidades públicas, falta de meios humanos na administração publica, da não disponibilização de meios efetivos de acompanhamento aos migrantes, quer de integração cultural, social e laboral, assim bem como da inexistência de possibilidade de acesso a advogado”.
Este organismo da Ordem dos Advogados visitou também os alojamentos onde os migrantes vivem, concluindo que estes não têm “quaisquer condições de habitabilidade, salubridade para qualquer ser humano”.
Acrescenta ainda que foi verificada a existência de “um clima de certa submissão e silêncio” por parte desses trabalhadores, que querem obter a nacionalidade portuguesa.
O relatório conclui também que “os migrantes ficam numa situação precária aos seguintes níveis: subsistência, habitabilidade, acesso a bens essenciais, direito à saúde, higiene e sem quaisquer programas de integração social ou laboral após aquela sazonalidade laboral que os trouxe até Portugal”.
Por isso, considera que “a nível laboral e de acesso a saúde, urge a legalização dos aludidos trabalhadores, bem como o acesso ao direito”, além de considerar “indiscutível a necessidade de realojamento em condições condignas e a tutela efetiva de seus direitos laborais à luz das normas nacionais e internacionais em vigor”.
OA QUEIXA-SE DE FALTA DE RESPOSTAS
De acordo com o relatório, este “fenómeno já é antigo”, “existindo monitorização da situação com especial relevo e atenção à crise pandémica” por parte da Proteção Civil.
A CDHOA detalha ainda que contactou com várias autoridades locais e nacionais para aferir a situação destes migrantes e procurar soluções. No entanto, mais de meio ano após o cerco sanitário, o documento conclui “não existir um plano de resolução efetivo e a ser executado no terreno para resolver os problemas anteriormente referidos”.
Segundo a OA, foi solicitada uma reunião com a Segurança Social para sensibilizar para a necessidade da “atribuição de um número de segurança social garantindo a estes o acesso aos mais básicos direitos constitucionais, como a saúde, apoio jurídico gratuito, entre outros”, que nunca obteve resposta.
A Ordem queixa-se igualmente da falta de respostas aos pedidos de colaboração e reunião por parte da Câmara Municipal e Ministério da Administração Interna. É ainda relatado que de maio a setembro, a Comissão esteve à espera de uma reunião com a secretária de Estado das Migrações, onde as representantes “foram parcas em resoluções e em informações, quer à questão da integração e alterações necessárias”.
A CDHOA elogia contudo a intervenção do subdiretor do SEF José Barão. “Notou-se que dentro dos parcos meios de que dispunha, fazia o melhor que podia, com os poucos recursos humanos, nomeadamente de Inspeção territorial.”
Por não haver um plano para a resolução da situação e “existindo a possibilidade de direitos humanos estarem a ser violados”, a CDHOA diz que vai continuar a acompanhar o caso “até que o poder político demonstre publicamente e execute um plano de ação nas várias vertentes acima referidas e a saber: habitação, segurança social, acesso a um advogado, entre outras”.
IGAI levou um ano a sancionar militares da GNR, maioria suspensa 90 dias
António Costa não viu as imagens das agressões de militares da GNR a trabalhadores imigrantes de Odemira, mas quando leu não teve dúvidas de que “comportamentos daquela natureza são inaceitáveis” e felicitou a Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) por já ter atuado, “uma vez que parte desses agentes já foram punidos e um deles expulso da GNR”, garantiu. O que não se sabia era que a IGAI ainda não se pronunciou sobre este último caso — o que tinha era desencadeado sanções por causa de um outro, anterior a este e já julgado, também de violência contra hindustânicos em Odemira (em que três dos militares agora envolvidos neste novo caso já tinham sido condenados).
O primeiro processo teve sentença na justiça em julho de 2020, mas só há escassos meses o ex-ministro Eduardo Cabrita recebeu as propostas de sanções da IGAI. Analisadas, o Expresso sabe que o então ministro da Administração Interna optou por “agravar três”. Exceção feita à expulsão da GNR do guarda André Ribeiro, condenado em tribunal a pena efetiva de seis anos de prisão — que ainda está a cumprir no presídio de Tomar —, os demais castigos ditam, no máximo, o afastamento por sete meses do serviço (num caso) e a maioria apenas 90 dias (três casos), apesar de todos os militares sancionados terem sido condenados na Justiça a penas suspensas entre os três anos e meio e os cinco anos.
– Notícia do Expresso, jornal parceiro do POSTAL