Manuel Alegre viveu o exílio, redigiu comunicados e proclamações, esteve à frente de emissões radiofónicas em Argel, conheceu os códigos da clandestinidade, regressou e manteve-se na política e na escrita, está sempre em regresso. Vem agora em “Uma outra memória”, Publicações Dom Quixote, 2016, com uma reunião de textos que se encontravam dispersos, confirmar a destreza que ganhou no passado, nesses textos curtos que deviam ser retidos quase como palavras de ordem, como verbos de combate, mensagens portadoras de um timbre declamatório, por vezes um tom manifestamente épico, uma voz de camarada para camaradas, cumplicidade das letras, um alerta para o Norte dos princípios, uma lembrança de jovem octogenário para outros portadores de sonhos. Não será por acaso que o subtítulo da obra inclui “A escrita, Portugal e os camaradas dos sonhos”.
São peças breves, outras curtíssimas, mas com sabor imemorial. Veja-se a recordação guardada de Mário Cesariny:
“Escreveu alguns dos poemas maiores da poesia portuguesa. Encontrei-o, pela última vez, uma noite no Príncipe Real. Trazia uma capa preta pelos ombros. Parecia o Príncipe das Trevas, mas não era, porque dele irradiava sempre uma luz”.
Traça quadros vigorosos dos seus camaradas de escrita e faz poética, fá-los grandiloquentes, mediúnicos, dançarinos astrais. Sobre Miguel Torga: “Não sei se quando Torga se debruçava sobre o Mondego olhava apenas as suas águas. Talvez se debruçasse sobre os grandes rios do Mundo e os outros, mais obscuros e profundos, da sua imaginação. Ou talvez se debruçasse sobre si mesmo, sobre as perguntas que constante e dolorosamente se fazia e constituem o cerne da sua escrita. Creio, aliás, que era assim que ele entendia a literatura: uma arte de perguntar, mesmo que não se encontre a resposta”. Chamou feiticeira Cotovia a Natália Correia e redige empolgado, fala dela como uma ausência que dói, e dita-lhe admiração imensa: “A poesia de Natália é uma das raras poesias fundadoras. Porque sendo moderna, entronca na grande tradição lírica portuguesa. Porque sendo fiel à raiz, foi profundamente transgressora e cantou a dimensão ‘transportuguesa’ de Portugal.
E há aqueles momentos decisivos, irrepetíveis, que nos alteram o curso da vida. Manuel Alegre não esquece o dia 31 de Maio de 1958, Humberto Delgado percorre triunfalmente Coimbra, as coisas ter-se-ão passado assim: “Eu estava perto do Astória. Ele vinha de pé, no carro aberto, sorridente, agitando freneticamente os braços. Delgado não saudava, puxava por nós, levantava-nos do chão, José Saramago que me perdoe. Passou mesmo à minha frente. A meu lado estava um homem muito alto, com um filho ao colo. Com as lágrimas pela cara abaixo, levantou o filho acima da cabeça e gritou: Oh meu general, salva o meu filho dos tiranos. Esse foi o momento que mudou a minha vida. Humberto Delgado e aquele homem de quem não sei o nome fizeram de mim um revolucionário”. E há as imagens impressivas de amigos que tiveram o seu momento áureo na política e que hoje só são rememorados em círculos restritos. É o caso de José Luís Nunes, assim esculpido: “Tinha o tique de coçar o nariz com a mão por detrás da cabeça. Era por certo uma das inteligências mais fulgurantes da geração que no início dos anos 60 começou a abalar o regime salazarista. Estou a vê-lo ainda muito jovem, a perfilar-se e a bater os calcanhares de cada vez que beijava a mão a uma senhora. Um elitista-antifascista. Foi um dos fundadores do PS, deputado pelo círculo do Porto, presidente do Grupo Parlamentar, membro destacado da Comissão de Defesa, integrou a delegação parlamentar da Assembleia da República do Conselho da Europa e foi vice-presidente e presidente da Assembleia Parlamentar da NATO. Um dia, numa visita a instalações militares desta organização, mostrou tais conhecimentos sobre armamento e estratégia que um general americano perguntou atónito a outro deputado português: quem é este general? Talvez esse gostasse de ter sido general. De certo modo foi: um general da inquietação, do inconformismo e da liberdade”.
Será impossível o leitor não se render a certas homenagens que ele presta, caso de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Carlos Paredes. E revela também o seu espírito combativo, brandindo o florete ideológico falando do que é ser bom ou mau socialista, da crise europeia, das liberdades, dos corredores da utopia. Um álbum de recordações, uma escrita empolgante onde cabem poetas, lutadores políticos, encontros e até desencontros. Lê-se e aflora a escrita do militante, de revolucionário, do roble poético que não desarma de empunhar as fontes da boa escrita.
* Assessor do Instituto de Defesa do Consumidor e consultor do POSTAL