Aí pelos anos 80, surgiu uma belíssima obra “Retrato da Lisboa Popular, 1900”, assinada por António Barreto e Maria Filomena Mónica, com chancela da Editorial Presença, o livro está hoje estranhamente votado ao silêncio. É uma homenagem à fotografia e ressalta o génio do principal responsável pela mutação fotográfica na imprensa portuguesa, Joshua Benoliel. Os autores recordam-nos da extraordinária riqueza do álbum que temos pela frente: “Uma Lisboa em momento crucial de crescimento e de industrialização. Com estes fenómenos coincidem outros de importância histórica: o fim da monarquia, as vicissitudes do regime republicano, a juventude dos movimentos socialista e sindical. Lisboa consolida-se como capital social e administrativa, vendo criar-se e crescerem a pequena burguesia urbana e as classes médias. A cidade define as suas vias de crescimento, sobretudo na área da Avenida da República e das avenidas novas (…) Em 1864 apenas 1 em cada 24 portugueses viviam em Lisboa. Em 1890, 1 em cada 15. Grande cidade portuária e capital de um império, Lisboa crescia aos vistos. Na última década de 800 passara de 300 mil para 350 mil habitantes. O ritmo acelera-se com o virar do século e, quando rebenta a revolução republicana, Lisboa tem já 435 mil habitantes (…) Lisboa era uma cidade muito especial, uma mistura de metrópole administrativa tradicional e de moderna cidade industrial. A caracterização do modo de viver e pensar de toda esta gente está por fazer”. Em “Belle Époque”, da autoria de Paula Gomes Magalhães, A Esfera dos Livros, 2014, temos aqui em traços largos a caracterização dessa Lisboa da Belle Époque, a Lisboa romântica que viveu o Ultimato britânico, uma Lisboa de contrastes, entre a tradição e o progresso, entre o centro chique e os arredores bucólicos dominados pela vida agrícola, e as profundas disparidades no modo de viver elegante e o das classes populares. E também uma Lisboa íntima e de entretenimento. O gosto parisiense prepondera: na arquitectura, na linguagem chique, no flanar. Como escreve a autora: “Lisboa queria-se francesa em praticamente tudo o que fazia: vestia à francesa, comia à francesa e delirava pelas actrizes francesas. Quando Sarah Bernhardt se apresentou pela primeira vez em Lisboa, em 1883, a cidade inteira revelou a verdadeira dimensão de um fascínio difícil de justificar”. Toda a Lisboa brilhante e luxuosa convergiu para o teatro do Ginásio. A diva seguiu depois para o Porto e até Santa Apolónia magotes de gente acudiram para ver pela última vez a artista. Imitavam-se os hábitos chiques, o Passeio Público, os passeios a cavalo no Campo Grande, o ténis, toda a ópera em S. Carlos cantada em italiano. Uma Lisboa romântica, com o toque da tuberculose, dos suicídios. Entretanto, os ideais republicanos engrossavam depois do Ultimato e Lisboa assistiu à decomposição da monarquia que vagarosamente implodiu.
E há o frenesim do progresso, o fim da Lisboa romântica ensaiou-se uma intensa renovação, há sonhos futuristas, como o da Avenida da Liberdade atravessada por um viaduto entre São Pedro de Alcântara e o Campo de Santana, como nas previsões de Júlio Verne, fala-se em túneis, pontes, aparecem elevadores, a iluminação a gás, expande-se o caminho-de-ferro e os transportes na cidade. O Chiado é o epicentro da moda, na Baixa situam-se as lojas de maior significado, desde o vestuário às perfumarias.
Trata-se de um livro que assegura uma leitura entusiasmante, oscilamos entre a alta sociedade e a extrema pobreza, convivemos com uma sociedade de machista que começa a ser contestada, aprendemos os códigos de galantaria da época, os hábitos de higiene, os registos e as crónicas da elegância, uma Lisboa que se diverte entre os casinos, as feiras, os banhos de praia, os passeios a Cacilhas, a lisboa que vai ao teatro e que descobre o animatógrafo, a Lisboa dos botequins fadistas, das touradas e dos bailes da classe elegante. Um mundo que caminha para a extinção com as reviravoltas republicanas, a I Guerra Mundial e que regressa à ordem com o Estado-Novo. Sim, uma entusiasmante leitura para perceber uma época onde tumultuaram o romantismo e o republicanismo e onde ascenderam as classes médias que passaram a determinar o percurso da História de Portugal.