As manhãs ali acordam perfumadas com flores de laranjeira. Daquela janela derrama-se o olhar sobre a cidade vermelha das pedras de grés do castelo e das muralhas.
Ao Palácio das Varandas, em Silves, chega o som da nostalgia. A rima dos poemas e dos amores de Ibnamar e Almutamid. Um caso de vida com todos os ingredientes de um drama shakespeariano. Feito de glória e tragédia. Amor e traição!
Inebriados pelo frenesim dos dias, os dois amigos beberam a festa da vida até ao último cálice. De prazer e de vibrantes arrebatamentos. Momentos celebrados em versos de saudade de Almutamid que o então rei de Sevilha e de todo o Al-Andaluz, dirigiu ao seu amigo Ibnamar:
“Saúda, por mim, Abu Bakr/ os meus amigos de Silves/ e pergunta-lhes se ainda se lembram de mim/ saúda o Palácio das Varandas/ morada de leões e de gazelas!/ à sua sombra, quantas noites passei/ com mulheres de quadris opulentos e estreitas cinturas!/ Ai quantas noites fiquei deliciado/ numa volta do rio preso em jogos de amor/ com uma donzela cuja pulseira imitava a curva da corrente!/ e ela servia-me o vinho do seu olhar/ o vinho da sua boca./ E assim passava os dias!”
Almutamid, nascido em Beja em 1040 onde passou a sua infância, era filho do rei da taifa de Sevilha, Abbad Al-Mutamid, que acabou por criar o mais vasto e poderoso domínio no Al-Andaluz, “o chamado reino da dinastia Abábida, que se estendia do sul de Portugal até ao estreito de Gibraltar”, incluindo a lendária cidade de Córdoba.
Seria ainda um jovem de 11 anos quando o pai o chama para perto de si e o nomeia depois governador de Silves. Foi por essa época que se aproximou e conheceu Abu Bakr Ibnamar, tornando-se seu amigo para a vida e para a morte.
Mas pouco tinham em comum, a não ser a genialidade poética e a atração pelos prazeres libidinosos de uma juventude à solta. Ibnamar, de origem humilde e plebeia “era ambicioso e calculista, atributos que mais tarde seriam determinantes para o trágico desfecho de ambos”. Natural de Estômbar – outros dizem de São Brás de Alportel – manterá com o seu amigo uma relação tão ambígua de cumplicidades íntimas como “apaixonada e possessiva, num ambiente de corte marcado pela luxúria e pelo prazer”. Mulheres, sexo e vinho.
Uma vida de prazer e volúpia, plena de luxos e de escândalos, amplamente espelhada na sua poesia em linguagem de grande brilho imagístico e de uma elegância requintada, mas sobretudo marcada por uma ardente sensualidade. Como este poema de Ibnamar:
“Minha’alma quer-te com paixão/ Ainda que haja nisso uma tortura/ E alegre vai na ânsia da procura. (…) Se o nosso reencontro acontecer/ P’ra teus lábios doces eu provar/ Folgarei no jardim da tua face/ Beberei desses olhos o langor/ E mesmo que um terno ramo imitasse/ O teu talhe grácil, sedutor/ Valerias mais que o imitador./ Não te ocultes, oh jardim secreto:/ Quero colher meu fruto predilecto!”
Os dias decorriam neste ambiente de lassidão e promiscuidade dos costumes que corrompiam os valores do próprio islão. Não recebiam, por isso, a simpatia e o agrado do pai de Almutamid – sobretudo as cumplicidades íntimas entre os dois amigos – que chamou o filho para junto de si, em Sevilha, desterrando Ibnamar para Saragoça.
Apesar de representar a época mais fecunda da produção poética do Garb Andaluz, este período “marcou o início da desintegração política e da dissolução do estado do reino da Abábida”. Após a morte de seu pai, Almutamid torna-se soberano e senhor do vasto território do Al-Andaluz, escolhendo para seu braço direito e primeiro-ministro, o amigo que antes havia nomeado governador de Silves.
Maior do que o seu génio poético, só a ambição era mais forte em Ibnamar, a ponto de corromper a relação de profunda confiança existente entre os dois, acabando por afastá-los irremediavelmente de forma trágica. Num mundo árabe cada vez mais fragmentado e dividido, o confidente do soberano deixa-se manipular por redes de conspiração contra o seu amigo, traindo-o em diversas ocasiões. E várias vezes pediu perdão e foi perdoado. Tomado de ciúmes chegou mesmo a hostilizar Itimad, mulher e o grande amor da vida do amigo.
Cego de poder, não desistiu de se envolver em sucessivas rebeliões conspirativas para derrubar Almutamid, autoproclamando-se emir de Múrcia. Acabou por ser preso e isolado em cativeiro, nada lhe valendo, desta vez, o apelo ao perdão dirigido ao amigo em nome dos bons velhos tempos:
”Perdoa e ganhará o amor/ Um outro realce, outra beleza./ É que se punires será o rancor/ A tomar mais evidência e mais clareza (…) Perdoa! O que partilhámos me redime/ Nos espaços perfumados de Alá/ Apaga os vestígios do meu crime!/ Venha da clemência o teu olhar/ E tudo enfim desaparecerá”.
Mas desta vez era um crime sem perdão. Almutamid encerra o amigo numa masmorra e num “excesso de raiva mata-o a golpes de machado com as suas próprias mãos”. Viria a chorar este ato de desesperada violência e a morte do amigo por toda a vida.
Entretanto, a ofensiva cristã contra o seu reino leva-o a pedir ajuda a Yussuf Ibn Tachfin, o novo soberano de Marrocos. Enganou-se e mais uma vez foi traído. Tachfin tomou posse do reino do Al-Andaluz e eliminou todos os reis das taifas peninsulares. A excepção foi Almutamid que é conduzido com a mulher Itimad para o desterro em Aghmat, nos arredores de Marraquexe. Aqui terminará os seus dias, agrilhoado e “num miserável cativeiro”.
Nos quatro anos que ali passou, escreveu sem parar e nem mesmo a escuridão da cela lhe retirou a inspiração. Itimad a sua musa que morreu antes dele, ficaria eternizada no poema acróstico de paixão e lágrimas que escreveu assim:
Invisível a meus olhos,
trago-te sempre no coração
Te envio um adeus feito paixão
e lágrimas de pena com insónia.
Inventaste como possuir-me
e eu, o indomável, submisso vou ficando!
Meu desejo é estar contigo sempre,
oxalá se realize tal vontade!
Assegura-me que o juramento que nos une,
nunca a distância o fará quebrar.
Doce é o nome que é o teu
e aqui fica escrito no poema: ITIMAD
Fontes: ”O Meu Coração é Árabe”, Adalberto Alves; Al-Mu ‘Tamid: o rei-poeta de Sevilha”, Mª João Cantinho; Poesia do Gharb Al-Andalus”, Frederico Mendes Paula; outras