“Picada Mortal” foi o livro de estreia da Rex Stout na literatura policial, em 1934, aparecia Nero Wolfe, detetive excêntrico, amante de boa comida e de belas orquídeas, que, juntamente com o seu jovem assistente Archie Goodwin, que bebe sempre copos de leite mas que não é alérgico às fortes aguardentes, será uma dupla que irá protagonizar dezenas de histórias e conquistar milhões de leitores em todo o mundo. Literatura suficientemente criativa para manter aficionados, nos tempos de hoje.
Certo e seguro, a figura de Nero Wolfe era tão invulgar como intrigante, uma monstruosidade de carne de alguém que sempre se autoproclamava como génio, tudo a passar-se fundamentalmente numa mansão onde se comia implacavelmente a horas certas como a horas certas o gigantão obeso desaparecia da convivência humana para cuidar das suas orquídeas. Logo neste livro de estreia, Rex Stout oferece-nos uma poderosa e cativante descrição: “Uma pessoa não acreditaria que existia no mundo uma coisa como Wolfe na cama, se não se certificasse com os seus próprios olhos. Eu certificara-me numerosas vezes, mas ainda não me cansara de admirar a cena. Em cima, havia uma colcha de seda preta com folhos de que ele nunca prescindia, verão ou inverno. Da elevação no meio descia um precipício para todos os lados, pelo que quem lhe queria ver o rosto tinha de se colocar mesmo em frente e em seguida debruçar-se para espreitar sob a espécie de dossel que se projectava da cabeceira da cama. Também era de seda preta e prolongava trinta centímetros para além do queixo, para ficar suspenso, muito baixo, nos três lados. No interior, a enorme cabeça repousava na almofada branca como uma imagem num templo”.
Tudo começa quando Maria Maffei contacta o genial Wolfe para lhe dar conta da sua inquietação, há dois dias que nada sabe do seu irmão Carlo, é assim que começa a investigação. Archie Goodwin é quem anda na rua, vai até à pensão onde vive Carlo Maffei, começa o desenvolvimento do enredo, a empregada da pensão dá-lhe umas dicas que permitem perceber que o desaparecido andava envolvido em estranhos trabalhos. Misturam-se histórias, um reitor universitário morre num campo de golfe, supõe-se que sucumbira a um ataque cardíaco. Carlo Maffei aparece assassinado, uma boa facada nas costas. A polícia entra em cena, pretende perceber o que Archie trouxera do quarto de Carlo Maffei, que tinha por profissão ser perito em desenho mecânico. A investigação muda de agulha, pretende-se agora averiguar em que condições, mais ou menos bizarras, morrera o reitor universitário. A viúva deste oferece uma fortuna desvende o que se passou. Todos os elementos da família do reitor e os amigos presentes durante o jogo de golfe vêm depor. É tudo turvo, mas o genial Wolfe conecta o assassinato de Carlo Maffei com o que se passou no campo de golfe. Ir-se-á descobrir que o reitor utilizara um taco destinado a outra pessoa, um dos membros da família Kimball. Dentro do enovelado dos encontros e desencontros, haverá um frente a frente entre Nero Wolfe e E. D. Kimball, que se revelará decisivo, é sem dúvida o diálogo mais empolgante de todo o romance. Rex Stout ilumina com frequência os tiques e a natureza da personalidade de Nero Wolfe. Vejamos uma dessas facetas: “Tenho-me perguntado com frequência quantas pessoas haverá em Nova Iorque às quais Nero Wolfe poderia pedir dinheiro emprestado. Mais de mil, sem dúvida. É claro que existiam muitas mais que lhe estavam gratas e um número não menos elevado com motivos para o odiar, mas há tipo de atitude especial que um homem tem de assumir para com o próximo antes de lhe solicitar um empréstimo e obter em troca algo de mais substancial que um franzido de sobreolho e uma desculpa vaga – uma mistura de confiança, boa vontade e gratidão, sem qualquer sentimento de obrigação para a tornar desagradável. Mil, pelo menos. Mas Wolde nunca tirava partido disso”.
É o diálogo entre Wolfe e E. D. Kimball que abre pistas para o esclarecimento dos homicídios e o seu porquê. Achando-se descoberto, o assassino prega uma partida à polícia, mete-se num avião e suicida-se matando o sujeito do seu ódio, o seu próprio pai. E a vida recomeça. Fritz, o cozinheiro, logo pelas onze horas da manhã, trás a primeira dose de cerveja do dia, Archie secretaria Wolfe, fala-lhe de dinheiro, das despesas e censura-o por ter feito justiça própria neste intricado triplo homicídio. Wolfe encolhe os ombros, diz que deixou à natureza o encargo de atuar, assume a responsabilidade dos seus atos. É um homem cultíssimo, misógino, gastrófilo ímpar. Qualidades e excentricidades que se irão sempre revelar nas estrondosas investigações que se prolongarão durante décadas, para prazer de todos os aficionados da literatura de crime e mistério.
De leitura obrigatória para os cultores do subgénero literário.