Os números agora divulgados pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS) são alarmantes e deixam a nu uma das falhas mais graves do Serviço Nacional de Saúde (SNS): o incumprimento dos tempos máximos de resposta na área da oncologia. A percentagem de cirurgias oncológicas realizadas fora dos prazos recomendados aumentou para 22,4%, num claro retrocesso face ao ano anterior, quando o valor já era preocupante, situando-se nos 19,3%. Este agravamento é particularmente inquietante quando falamos de uma área onde o tempo é, sem exageros, uma questão de vida ou de morte.
Além do aumento do incumprimento nas cirurgias, um outro dado da ERS aponta para uma realidade ainda mais assustadora: mais de 82% dos utentes que aguardam a primeira consulta com suspeita ou confirmação de doença oncológica estão à espera para lá dos prazos estabelecidos por lei. Trata-se de um número que, por si só, deveria gerar uma reação firme e imediata das entidades competentes, mas que, infelizmente, parece apenas ser mais um dado em relatórios que se acumulam sem ação concreta à vista.
O tempo de resposta, especialmente no contexto do cancro, não é um detalhe técnico ou burocrático. É uma questão de humanidade, de respeito pelo doente e, acima de tudo, de garantir o seu direito à saúde
Estes dados são sintomáticos de um sistema em falência, onde os doentes oncológicos são remetidos para intermináveis listas de espera, com a agravante de que muitos deles são forçados a lidar com o aumento do seu sofrimento e o progressivo deteriorar das suas condições de saúde. O tempo de resposta, especialmente no contexto do cancro, não é um detalhe técnico ou burocrático. É uma questão de humanidade, de respeito pelo doente e, acima de tudo, de garantir o seu direito à saúde.
De acordo com a ERS, o aumento de consultas e cirurgias fora dos prazos deve-se, em parte, à falta de uma implementação eficaz do Registo de Saúde Eletrónico no Sistema Integrado de Gestão do Acesso (RSE-SIGA) em todas as unidades hospitalares. Ora, este é mais um exemplo de como a ineficácia e a falta de coordenação entre os serviços de saúde estão a custar caro aos cidadãos. Como é possível que, em pleno ano de 2024, a digitalização e a articulação de sistemas de gestão ainda não estejam totalmente implementadas?
Os dados apresentados revelam ainda outro aspeto preocupante: a percentagem de espera em especialidades-chave como cardiologia e outras áreas críticas, que igualmente registam números assustadores. A taxa de consultas de cardiologia realizadas fora dos prazos recomendados atinge 85,5% no SNS, o que significa que, numa das áreas médicas mais vitais, a maioria dos utentes continua a ser deixada para segundo plano.
A responsabilidade por esta situação deve ser assumida por quem de direito. Não se pode continuar a mascarar esta grave crise de gestão, em que falta um planeamento sério e coerente, soluções concretas e um acompanhamento firme das políticas. O SNS, uma conquista histórica de Portugal, está a ser desmantelado por sucessivos erros de gestão e por uma falta de vontade política para priorizar a saúde dos cidadãos.
A sociedade portuguesa, especialmente aqueles que enfrentam a doença oncológica e outras patologias graves, exige respostas imediatas e um compromisso sério com a melhoria dos serviços. Não podemos aceitar como normal que mais de 7.300 pessoas esperem pela primeira consulta oncológica em tempos que violam o limite máximo legal. Não podemos compactuar com um sistema que falha com quem mais precisa.
Em vez de números, falamos de vidas. Falamos de pais, filhos e amigos que enfrentam o medo e a dor, não apenas pela sua condição de saúde, mas pela incerteza e desespero de um sistema que não responde. O tempo é precioso, mas o SNS parece estar em contrarrelógio para bater recordes indesejáveis de ineficiência.
A situação é inaceitável e exige uma profunda reflexão. E, mais do que reflexão, é necessária ação. Atuar agora é não só uma questão de responsabilidade, mas um imperativo moral para com aqueles que aguardam, impotentes, por uma resposta que tarda em chegar.
Leia também: O dilema ético nas relações comerciais de Portugal | Editorial