Associações internacionais de autores, editores, livreiros e bibliotecas emitiram recentemente uma declaração conjunta sobre Liberdade de Expressão, de Publicação e de Leitura, alertando para os crescentes movimentos de proibição e cancelamento de obras e autores. A Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) é uma das signatárias. A mais recente apresentação desta declaração aconteceu em Março último, na Feira do Livro de Londres, como noticiou o Expresso.
Este é um tema que me é especialmente caro enquanto bibliotecário e, como tal, agente facilitador do livre acesso às diversas manifestações culturais e da livre difusão da informação. Acende-se-me um alarme sempre que surgem notícias sobre este tema. Preocupa-me verdadeiramente o surgimento destes movimentos, pois eles são a prova de que a censura não é exclusiva das ditaduras.
A História mostra-nos que sempre houve tempos de retrocesso civilizacional. Se, aos olhos de hoje, tende a aceitar-se, com tímida condescendência, uma certa ignorância vigente em eras passadas, talvez já não seja muito normal permitir-se uma caça às bruxas nos tempos modernos. Ou será?
As bruxas de antigamente parece nunca terem ardido completamente na fogueira e ainda resistem em bolsas que inflam de vez em quando, como todas as que agem, supostamente, em nome de uma divindade qualquer, por exemplo. Felizmente, a sensatez tem regressado sempre para alturas de relativa acalmia.
As bruxas modernas materializam-se nos movimentos pseudo-politicamente correctos; nos movimentos woke e outros do mesmo nível que, juntos, formam a «cultura não-me-toques» como eu gosto de chamar; a confusão de género; e milhentas outras mais. Ou será milhentos outros, ou milhentes outres? Não consigo acertar, nem quero. Longe de mim pensar em alinhar nestas patetices auto-denominadas de «progressistas». Tudo isto cresce como cogumelos na era do conhecimento e do progresso tecnológico.
Será compreensível, com o nível de conhecimento actual, assistirmos a movimentos extremistas castradores da nossa liberdade fundamental de expressão? Mandar uma paulada potencialmente mortal ao gato deixou de servir para ilustrar uma lição moral aos nossos pupilos? O que aprenderão eles hoje se estes exemplos forem eliminados, e quando só lhes forem apresentadas coisas supostamente certas e alegadamente boas num mundo totalmente cor-de-rosa? Que oportunidade para o debate, para a reflexão e para o contraditório existirá? Isto não será impor tiranamente uma visão obtusa e irrealista do mundo? Uma visão única e incontestável não é saudável. O mundo pode e deve ser visto de várias perspectivas. Mesmo assim, é vê-los materializar-se a cada esquina, em variados contextos.
O livro ainda é aquele distinto objecto ao qual todos reconhecem autoridade. Mas está em perigo. Alturas houve em que foram proibidos e queimados quando lá podia ler-se uma qualquer opinião contrária à nossa (de um qualquer tirano, isto é). Mas isso era antigamente, pensava eu. Nos nossos dias, reescrever é que é moderno. Criam-se artificialmente falsos problemas e forjam-se conceitos que os legitimem, vai-se inventando novas palavras, arranjam-se realidades alternativas à medida… Volta Orwell, estás perdoado.
Hoje, já ninguém tem opinião. Somos todos detentores da verdade absoluta. Somos, cada um de nós, a autoridade. Em todas as áreas. Resulta daí, que passámos a bloquear e a cancelar nas redes digitais (não uso a expressão redes sociais de propósito, pois têm tudo menos de social), num esforço de silenciar toda e qualquer opinião contrária, ou tão somente diferente, da nossa.
Diríamos que as bruxas não passam de uma fantasia delirante e ultrapassada, ou estará mesmo a caminho uma nova era das trevas? Eu cá não acredito em bruxas, mas que elas andam aí, meus amigos, lá isso andam.
Eu cá continuarei tranquilamente a atirar o pau ao gato as vezes que me apetecer.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
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