Durante anos e anos, Rui Cardoso Martins, que é escritor, argumentista de cinema, autor de programas televisivos e de várias séries dramáticas e de comédia, jornalista e cronista do jornal Público desde a sua criação, andou a cobrir julgamentos, e foi assim que se recuperou uma tradição do jornalismo português, a crónica do tribunal. “Levante-se o réu”, por Rui Cardoso Martins, Edições Tinta-da-China, 2015, é uma selecção dessas crónicas onde se relatavam esses julgamentos. Foram uma presença constante do Público, de Março de 1990 a Janeiro de 2007.
A crónica era ilustrada por Vasco. Quando passei pelo 1º ano de Direito, recomendaram-me que assistisse aos julgamentos na Boa-Hora. Assisti a uma cena impagável: Emília Fernandes, que era conhecida na praça por “a advogada das peixeiras”, defendia uma vendeira de galináceos e afins que numa altercação com uma colega de ofício proferira palavrões de grande vernáculo e pendor ofensivo. O que me deslumbrou foi a argumentação da advogada, querendo cativar o meritíssimo juiz para os valores familiares da arguida: mãe exemplar, educara dois filhos e dera-lhes instrução superior, benemérita de várias congregações, com um registo criminal sem mácula. Feita esta oração, o meritíssimo perguntou à vendeira de galináceos se pretendia pedir desculpa à ofendida, ao que esta retorquiu: “Preferia encher a cara de lama a pedir desculpa a essa galdéria”. Tudo em vernáculo.
É para mim um mistério como Rui Cardoso Martins nunca se repetiu ao longo dos anos e explorou todas as facetas da comédia humana, mais do que um retrato da sociedade portuguesa do nosso tempo, ele carpinteirou todas as suas crónicas com o nosso melhor e pior dos sentimentos e das pulsões, ele próprio descreve o ecrã do mundo que cronicou infatigavelmente. “Amizade, amor, sexo, traição, homicídio, incesto, pedofilia, maus-tratos, violência doméstica, abnegação, racismo, religião, sorte, azar, premeditação, acidente, maldade, bondade, estupidez, egoísmo, heroísmo, mesquinhez, cultura, ignorância, riqueza, miséria, humor”. E mais, muito mais, entre o Tribunal de Polícia e o Palácio da Justiça, vemos crianças a fazer desenho, por ordem da juíza, um masturbador que aproveitava as horas do almoço, narcotraficantes, cenas de pugilato, tudo é possível encontrar em “Levante-se o réu”. A crónica ganha força porque a descrição é vivacíssima, e tem habitualmente um final desconcertante. É o caso daquele julgamento de um tal José ter sido apanhado com uma pistola de pressão de ar, ninguém está à espera do bizarro. Tome-se nota, é prosa para saborear:
“A juíza, lendo os papéis, recordou-lhe alguns assaltos.
– Sim, sim, eu lembro… Isso era quando andava no veneno. E há mais qualquer coisa… Mas este menino aqui…
Contou então:
– A arma foi alterada por mim próprio. Abri, raspei o rolo do tambor para poder lá meter dentro as tais munições reais.
– Para quê?
– Eu conheço bem a noite e, felizmente ou infelizmente, andei na má vida.
– Por que é que decidiu alterar a arma?
– Exactamente porque muita gente já não acredita em mim. Ia ter com uns tipos que me quiseram fazer a folha. Tentaram bater-me e eu defendi-me e tal…
– Ia matá-los?
– Só dar uma lição. Ia mostrá-los que posso ser seropositivo mas que ainda não estou morto”.
A conversa prossegue com aspectos técnicos quanto ao funcionamento da arma e temos a arrancada final:
“E chegou a pistola, um canhão de cabo de madeira, negra e grande como a noite. E o advogado pegou na pistola e o Ministério Público deu um gritinho.
– Espera lá, agora não se vai pôr a apontar isso, o sôtor veja lá!
O advogado abriu a pistola.
– Isto é impossível. Esta arma não dispara!
Tinha toda a razão”.
Houve folhetins que não morreram, desde que os jornais consagraram este subgénero. Direi o mesmo para a crónica, basta ver o exímio de todas estas crónicas onde não falta nada, sempre com um arranque primoroso. Dois exemplos: “A autoestrada serve para levar-nos de um lado ao outro, em paz. Mas às quatro da madrugada, nas autoestradas, passam os que se levantaram muito cedo e os que se vão deitar muito tarde. O sono flutua nos olhos dos condutores como uma rolha na água, e a luz do carro estica-se na estrada para comer a escuridão”. E outro ainda: “Amigos, amigos, prisões à parte. O senhor Dinis estava em casa na sua actividade habitual, a bater na mulher, e depois foi à taberna reabastecer-se, porque deixar uma mulher de muletas e colar cervical gasta várias calorias. Quando subiu, já lá estava o polícia e o senhor Dinis, mostrando não ser machista deu três bofetadas no homem e acrescentou: – Tenho uma pistola em casa e vou dar-te um tiro nos cornos. Tenho em casa um monte de facas e vou-te furar todo, meu cabrão”.
Nenhum estudante ou estudioso das ciências sociais e humanas pode manter-se alheado desta leitura. Os alvos do seu trabalho são também estes seres humanos que Rui Cardoso Martins registou para todo o sempre, e que anda à nossa volta… E nós deles.
* Assessor do Instituto de Defesa do Consumidor e consultor do POSTAL