O país dos outros, de Leïla Slimani, publicado recentemente, com tradução de Tânia Ganho, é a terceira obra da autora que nos chega com o selo da Alfaguara, depois de Canção doce (Prémio Goncourt) ou No Jardim do Ogre. É também uma obra muito diversa das anteriores, em que a autora se reinventa, de modo a contar uma saga familiar assombrosa, e verdadeira, inspirada na história da sua avó. Esta primeira parte, intitulada «A guerra, a guerra, a guerra», inicia aparentemente uma trilogia que tem o processo de independência de Marrocos como ambiente de fundo.
Mathilde é uma jovem alsaciana que se apaixona por Amine, um oficial marroquino que combateu pelo exército francês na Segunda Guerra Mundial e esteve prisioneiro durante anos. Em 1946 chega a Rabat, para reencontrar o marido, e no ano seguinte mudam-se para uma quinta a 25 quilómetros de Mèknes. Não é muito claro o sentimento de Mathilde por Amine, contudo isso não a impede de deixar o seu país e, progressivamente, abdicar até da sua identidade. Se no início sentimos essa divisão interior de forma angustiante, mais perto do final do livro, especialmente quando Mathilde volta finalmente à Alsácia, as suas dúvidas dissipam-se e a sua resignação parece consumar-se.
«De olhos baixos, com o véu puxado quase até aos olhos, sentia-se desaparecer e não sabia muito bem o que pensar disso. Se esse anonimato a protegia, se inclusive a entusiasmava, ao mesmo tempo era como um fosso dentro do qual se enterrava sem querer e tinha a sensação de que, a cada passo, perdia um pouco mais o seu nome, a sua identidade, que, escondendo o rosto, escondia uma parte essencial de si própria.» (p. 101)
O país dos outros é, claramente, Marrocos, para onde Mathilde se muda, onde será irrevogavelmente estrangeira: a sua união com Amine chega a criar repulsa perante os outros, e não ajuda o facto de ela ter mais um palmo de altura do que o marido. Também Amine, apesar de estar no seu país, é visto como um estranho, um traidor e um herege, por ter combatido pelos franceses. Marrocos, colónia francesa cuja tensão latente explode em 1956 com a sua independência, reclama para si o direito a não ser pertença de outros, com os colonos franceses a tornarem-se no inimigo. É, por fim, num país de homens que as mulheres procuram a sua voz, apesar de o destino estar «do lado dos homens, dos poderosos, da injustiça» (p. 283). Até Amine percebe como a mulher se apaga naquele monte onde reina o trabalho inglório de tentar arrancar frutos a uma terra estéril e infértil. E continua a haver momentos em que, apesar das divergências pessoais, culturais, religiosas, o amor que outrora os juntou se reacende numa firme união:
«Nesse instante, não estavam em campos opostos. Não se regozijavam com a infelicidade do outro. (…) Não, nesse instante, pertenciam ambos a um campo que não existia, um campo onde se misturavam, de maneira igual, e por conseguinte estranha, uma indulgência para com a violência e uma compaixão pelos assassinos e os assassinados. (…) Eram simultaneamente vítimas e carrascos, companheiros e adversários, dois seres híbridos incapazes de dar um nome à sua lealdade. Eram dois excomungados que já não podiam rezar numa igreja e cujo deus é um deus secreto, íntimo, do qual ignoram tudo, até o nome.» (p. 313)
Leïla Slimani cria um romance encantatório que nos prende da primeira à última página, absolutamente encantatório, mesmo nos momentos de dor ou violência. A voz narrativa é distanciada, neutra, fazendo desfilar uma série de personagens tão complexas quanto densamente animadas perante nós. Uma proeza da autora é a forma como a voz narrativa acaba por coincidir com a focalização das personagens, a sua perspectiva única, até no mais antipático Mourad. Torna-se, contudo, claro que as personagens que aqui se destacam, são Mathilde e Aïcha.
Leïla Slimani nasceu em Marrocos em 1981. Com 17 anos foi para Paris estudar Ciências Políticas. Foi jornalista antes de se dedicar à escrita.